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A Clínica em São Paulo sob o olhar de Foucault – Hospital de Isolamento (Lazareto)

Atualizado: 19 de dez. de 2024



Neuza Aparecida de Oliveira Peres***


Trabalho pedido pelo PROF. DR. SÉRGIO ADORNO para cumprir exigência da Cadeira de Antropologia Social, Curso Legalidade e Moralidade na construção da sociedade burguesa. Elaborado por NEUZA APARECIDA DE OLIVEIRA PERES, matriculada com aluna especial no curso de pós graduação na UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP

 

 "A primeira tarefa do médico é, portanto, política: a luta deve começar por uma guerra contra os maus governos; o homem só será total e definitivamente curado se for primeiramente liberto: Quem deverá, portanto, denunciar ao gênero humano os tiranos, se não os médicos que fazem do homem seu único estudo, e que todos os dias, com o pobre e o rico, com o cidadão e o mais poderoso, na choupana ou nos lambris, contemplam as misérias humanas que não tem outra origem senão a tirania e a escravidão?"


Michel Foucault

INTRODUÇÃO


O hospital, tal como se conhece hoje, local de tratamento e recuperação de doentes, não é uma criação antiga, ele surgiu a partir do século XVIII, na Europa. A partir dos novos conhecimentos científicos nas áreas de química, física e botânica, a medicina também teve seu campo de abrangência maior quanto às possibilidades de localizar e isolar as causas dos males que afligiam a humanidade.


Na Idade Média, a concepção que se tinha de hospital não era a mesma. Os hospitais não eram um meio de cura, mas uma forma de atender aos necessitados, afastando do meio social estas pessoas que representavam perigo de contaminação. Portanto, o hospital representava mais um mecanismo de exclusão e segregação social.


O hospital permanece com estas características até o começo do século XVIII. A medicina, na verdade, era praticada nos domicílios. Era nas casas que o médico assistia aos seus pacientes. Era no interior dos lares que os médicos podiam observar todo o desenvolvimento dos males, prescrever receitas e acompanhar as crises, pois, nelas que se percebia a evolução da doença e se estabelecia exatamente "a natureza sadia do indivíduo e o mal que o atacava".¹


O instrumento utilizado para a reorganização do hospital foi a disciplina. "A disciplina é uma técnica de exercício do poder que foi, não inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVIII". É através do exercício da disciplina que os sistemas econômicos puderam desenvolver o escravismo nos moldes em que existiram por longo período histórico, seja na antiguidade, seja no escravismo colonial de que ainda vemos resquícios.


Desta forma, é através da distribuição espacial dos indivíduos que se realiza a "inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório".


É neste contexto que se insere a formação urbana da cidade de São Paulo, em meados do século XIX. Embora, na Europa este fenômeno tenha ocorrido cerca de um século antes, deve-se levar em conta que o desenvolvimento econômico e o crescimento urbano de São Paulo deu-se de forma tardia, justificando a mentalidade provinciana neste período.

 

O Hospital de Isolamento da Capital localizava-se em área bem afastada do centro urbano. Tal medida se fez necessária para atenuar o medo que tais moléstias causavam na população e diminuir o risco de contágio. 


SÃO PAULO NO SÉCULO XIX.


No início deste século São Paulo conservava ainda o aspecto dos tempos coloniais, com casas todas brancas, de taipa muito sólida, cobertas de telhas côncavas, formando contraste entre o branco das paredes e o vermelho dos telhados. Além do branco era usado também o amarelo palha e o rosa, o que dava à cidade um aspecto de limpeza.


Data do ano de 1825 o nascimento do Jardim Botânico que depois se transformou no Jardim da Luz. Porque a população precisava respirar "ar puro das suas ruas e seus mercados e para que não percam completamente o gosto pelas belezas da natureza".


Por volta de 1822 eram um total de dez as freguesias que constituíam os termos da cidade, sendo que apenas três constituíam a parte central, eram elas: Sé, Santa Ifigênia e Brás, as demais eram: Guarulhos, Nossa Senhora do Ó, Cotia, Nossa Senhora da Penha, São Bernardo, Juquerí e M'Boi (Embú) que faziam a parte suburbana da cidade.

 

O nome do Viaduto do Chá é originário da cultura do chá desenvolvida à margem esquerda do Anhangabaú, propriedade do Barão de Itapetininga.

 

As indústrias paulistanas eram modestíssimas e não se poderia nem sequer imaginar o surto industrial da cidade, obra, principalmente do séc. XX. John Mawe refere-se a uma pequena indústria de fiação de algodão e de lã manufaturada à mão e de evidente caráter doméstico, como também a uma cerâmica rústica a que se dedicavam os índios "crioulos", nos arredores da cidade. Daniel Müller no que se refere às profissões, constata a existência de uma ativa "pequena Indústria" indispensável para atender às necessidades da cidade e sua população, destacavam-se notadamente carpintarias, sapatarias, oficinas de ferreiros, alfaiatarias, olarias, ourivesarias, marcenarias, selarias, etc.


O acontecimento mais importante em toda a primeira metade do Séc. XIX foi, sem dúvida, a instalação da Academia de Direito. Instituída pela lei de 11 de agosto de 1827 e posta a funcionar a partir de março de 1828.


Foi como que um retorno à sua primitiva função escolar dada pelos padres jesuítas da Cia de Jesus, fazendo com que por muito tempo ambas, cidade e academia, fossem totalmente confundidas, a história de uma sendo quase a história da outra.


A presença de jovens do sexo masculino vindos de todo o Brasil fez com que mudassem os hábitos dos paulistanos, trouxe a modernidade para São Paulo, amplamente desenvolvida neste século. A produção literária e política dos estudantes, começando com o Amigo das Letras, em 1830, atingiu proporções surpreendentes. Foram introduzidas novas modas no vestuário, essa nova maneira de ser levou a vida e o divertimento às ruas, surgiram as tavernas e livrarias, inauguraram o sentimento de comunidade.


Três fatores competiram para desenvolvimento econômico e, consequentemente a urbanização de São Paulo na segunda metade do séc. XIX, foram eles: a expansão do café, a multiplicação das estradas de ferro e a imigração européia, intimamente ligados. Apesar de serem praticamente inseparáveis, os dois primeiros fatores, cada um a seu tempo, contribuíram expressivamente para esse desenvolvimento.


"Até a proclamação da República a preocupação das autoridades em relação à saúde pública consistia principalmente em tornar o meio físico habitável para a coletividade. Em 1852, através do decreto n°2052/1852 as Comissões Provinciais de Higiene e os Provedores de Saúde Pública são transformados em Inspetores de Saúde Pública e passam então a vistoriar embarcações, boticas, mercados e todos os lugares considerados insanos, ou que pudesse ser foco transmissor de moléstias infectocontagiosas. As doenças eram atribuídas à fatores externos. Acreditava-se que partículas invisíveis seriam responsáveis pela contaminação no homem. Nos pântanos existiriam pequenos animaizinhos que atacariam o homem pela boca ou narinas. Somente com o descobrimento das bactérias é que se dá a unicausalidade das doenças, isto é, a cada mal corresponde um agente etiológico. Dá-se a descoberta da vacina O tratamento recomendado até então consistia basicamente no isolamento e nas quarentenas, medida que visava não só o tratamento para os doentes como também a prevenção para os sadios."


Em 1804 introduz-se o método de vacinas, mas é rejeitado pela população que não acredita na sua eficácia. Passa-se então a convocar oficialmente as pessoas para a vacinação


A SAÚDE PÚBLICA NA PROVINCIA DE SÃO PAULO


Nos primeiros séculos de povoamento da Província de São Paulo a preocupação das autoridades em relação à saúde pública, consistia basicamente em tornar o meio físico habitável para a coletividade.


Consta em Atas da Câmara do final do século XVI que a responsabilidade pela Saúde Pública estava a cargo de um Juiz de Oficio, Antônio Ruiz, foi ele então o primeiro higienista da História de São Paulo.


A partir das descobertas no campo da física e química, verificadas no Séc. XVII. Passa-se a considerar como transmissores de doenças os miasmas que são emanações de partículas da atmosfera. Esse pensamento só será superado no final do Séc. XIX com a descoberta da Bacteriologia.


O isolamento geográfico da cidade de São Paulo favoreceu nos dois primeiros séculos o desenvolvimento de um quadro de doenças endêmicas. Só com o crescimento econômico e a passagem da vila para cidade, este quadro tornou se epidêmico. Ao transformar-se em local de passagem de tropeiros, militares e comerciantes desenvolvem-se as epidemias.


A economia precária da Capitania de São Paulo talvez seja responsável pela ausência de lugares de atendimento aos enfermos. No início do séc. XVII havia somente um hospital, a Santa Casa de Misericórdia, e dois cirurgiões para atender a população. Não se sabe ao certo a localização da Santa Casa, talvez tenha sido na Rua Direita.


Com o crescimento da população transitória cresce também os problemas de saúde A higiene passa então a constar dos problemas primordiais no controle das epidemias, principalmente a varíola.


No início os variolosos são tratados em sua própria casa, mas depois percebe-se a necessidade de tratá-los nos hospitais, de onde surge a necessidade de criação dos hospitais de isolamento.

As primeiras gestões neste sentido foram movidas em 1875, como resposta ao aumento do número de casos na cidade, justificando a instalação de um hospital de isolamento. Situava-se no nº 1 da Av. Araça, atual Av. Dr. Arnaldo, encontra-se hoje o Instituto Adolfo Lutz.


As técnicas modernas da bacteriologia e as idéias a ela associadas não haviam chegado ao Brasil, mas o Hospital de Isolamento foi construído e teve sua rotina ordenada de acordo com normas convencionais da arquitetura e administração hospitalar. Esses preceitos haviam sido formulados originalmente por Jacques René Tenom, no final do século XVIII. Decorridos cem anos, essa concepção ainda gozava de grande aceitação dentre as autoridades sanitárias nacionais, embora sua aplicação tenha sido contabilizada com resultados muito pouco satisfatórias em outros países, concernente ao aumento da eficácia terapêutica dos hospitais.


O Hospital de Isolamento não se destinava a um funcionamento regular, seria um estabelecimento provisório, mantendo-se fechado quando não ocorresse surtos epidêmicos. Tal medida se justificava devido ao caráter impopular do hospital e pela pequena aceitação das medidas de controle de epidemias. Especialmente a realização de quarentenas e o isolamento compulsório de pacientes e comunicantes, ocasião em que previa-se, inclusive, o uso da força policial.


Foi grande o impacto, para os brasileiros, da vinda da família real para o Rio de Janeiro, mas pode-se dizer que em São Paulo este fato trouxe transformações somente no desenvolvimento de uma economia voltada para o comércio. Ainda que de uma maneira precária, surgem no interior do estado os primeiros engenhos de açúcar. A economia que até então era de subsistência, só vai ser significativa mesmo a partir de 1870, com o café. No entanto, tem grande influência na evolução urbana da cidade com os fazendeiros passando a morar aqui.


Com o surgimento de uma nova classe social: a aristocracia rural, tomam se outras medidas de saneamento mais "eficazes no controle das epidemias… são designados lugares específicos às pessoas com vários tipos de problema. Há uma preocupação em afastar do meio social os doentes mentais, para isso criam-se os hospícios, para os leprosos os lazaretos, para os portadores de doenças contagiosas são criados vários locais de isolamento. Mas esses locais nem sempre atendem às necessidades básicas, no entanto, eles são necessários para assegurar uma vigilância contínua.


"O hospital, que em sua forma mais geral só traz os estigmas da miséria, aparece ao nível local como indispensável medida de proteção. Proteção das pessoas sadias contra a doença, proteção dos doentes contra as práticas das pessoas ignorantes: é preciso preservar o povo de seus próprios erros, proteção dos doentes uns com relação aos outros".


A cidade se expande para além dos limites do triângulo formado pelos Rios Tamanduateí, Anhangabaú e Tietê. Essa complexidade urbanística exige outras medidas de saneamento como por exemplo a criação da Hospedaria dos Imigrantes no Brás, que passa a ter a função do controle epidêmico de estrangeiros entrados no Brasil, além da função oficial de encaminhamento desses imigrantes ao interior do estado para trabalhar na lavoura, afastando-os dos centros mais populosos da capital.


No decorrer do Séc. XIX a saúde pública é preocupação das classes mais abastadas e da classe média da sociedade. Assim, os privilegiados com uma condição financeira adequada vão tratar-se na Europa, as classes intermediárias criam associações mutuárias de ajuda. É nesta época que surgem os grupos de mutualidade de imigrantes: os hospitais de Beneficência Portuguesa, o Hospital Sírio Libanês, Albert Einstein, etc.


No segundo Congresso Brasileiro de Medicina, em 1889, a grande preocupação dos médicos era a de acabar com as doenças, mas para isso os próprios médicos chegaram à conclusão de que a responsabilidade não deveria recair somente sobre eles, mas também sobre o Estado.


Com isso, esses médicos passam a defender seu projeto de cidade, pois a consideram um "corpo doente". A primeira medida tomada é o saneamento do solo, já que este é considerado um transmissor de doenças. Além do saneamento do solo, os rios são canalizados e os pântanos drenados. A engenharia sanitária passa acatar as medidas ditadas pelos médicos.


Não só o solo, mas os "miseráveis" também são considerados transmissores de doenças. Vemos aqui que a questão sobre as causas das doenças expandem-se do "meio físico para o "meio social". Isso pode ser comprovado pela seguinte citação:


"…o mau estado higiênico de uma sociedade inteira pode ser causado pela menor resistência às moléstias de uma só classe, a qual se converte em centro de infecção perigoso para toda sociedade…"


A segunda medida tomada foi a criação de uma polícia sanitária que dividiu a cidade em "distritos sanitários" e tinha como função recolher doentes, fazer a inspeção sanitária de locais suspeitos, fiscalizar algumas pessoas afim de evitar "charlatões" e "feiticeiros".


Com o panorama da cidade nas mãos, a polícia sanitária passou a demarcar regiões suspeitas, denominadas "focos" para que a doença que ali nascesse ou se escondesse, não se propagasse para outras regiões. Além disso, com essa prática, há uma maior interação da realidade das classes populares, por parte das autoridades.


A prática da fiscalização da polícia sanitária consistia em visitas domiciliares nas regiões de foco, além das interdições de moradias, evacuação de prédios e intimações, sob alegação de acabar com os mosquitos transmissores de epidemias.


Quanto à mentalidade da população na época, havia uma forte resistência, juntamente com outros setores da sociedade, no sentido de ir contra as medidas de vacinação. A própria imprensa demonstrava descontentamento através de seus artigos.


A REVOLTA DA VACINA NO RIO DE JANEIRO


Em 1904, explode no Rio de Janeiro uma revolta popular auxiliada por uma tentativa de sublevação militar, liderado pelo Coronel Lauro Sodré integrante da facção jacobinista do exército.


Essa facção fundou a Liga contra a Vacina Obrigatória, defendeu ideais positivistas e faziam oposição ao governo civil iniciado por Prudente de Morais.


Durante o governo de Rodrigues Alves, a ação jacobinista do exército volta à ativa. Rodrigues Alves tem como plano de governo o saneamento e a melhoria do Porto do Rio de Janeiro, e contrata o engenheiro Pereira Passos para remodelar a cidade e melhorar as condições de higiene. Contrata também o médico Oswaldo Cruz para acabar com a doença na cidade.


Foram derrubados cortiços, hospedarias, estalagens e Oswaldo Cruz organiza um serviço de desinfecção, onde a principal medida, e a mais contestada, foi a vacinação.


A união de intelectuais positivistas com a ala jacobinista do exército levou o povo a se revoltar. Os dois primeiros grupos preparavam um golpe militar para 1904 e receberam o apoio do Centro das Classes Operárias, conseguindo colocar o povo nas ruas através da imprensa, reuniões e comicios.


Para conter a revolta, houve a intervenção do exército com a força naval e que conseguiu dominar o movimento de sublevação militar. A última trincheira a cair, foi o "Porto Arthur recuperando a ordem na cidade. Líderes da revolta foram presos, mortos ou deportados para o Acre.


CONCLUSÃO


A nova configuração urbana da cidade de São Paulo, desenvolvida a partir das novas exigências da aristocracia rural, aliou o poder do capital emergente à uma ideologia voltada à segregação e à diferença de classes, caracteristica deste sistema econômico, o capitalismo.


Desta forma, o poder público se consubstancia em projetos de engenheiros e arquitetos, que se revelam nas leis urbanas, tentando organizar o habitat humano nas cidades e nas intervenções diretas.


A lei tem um papel importante no que se refere à garantia da higiene. Em 1886, foram escritos trezentos e dezoito artigos, que visavam a ordem e a higiene na cidade, além de propor modelos de moradias condenando os cortiços. A prática era justamente mandar os moradores dos cortiços para as áreas periféricas, longe do centro. Mesmo assim esse tipo de habitação aumentava.


Eram os mesmos os defensores das idéias positivistas que questionavam a cientificidade das medidas de saneamento e profilaxia e pregavam a ordem do espaço urbano. Levantavam a bandeira de "Liberdade para as nossas consciências! Liberdade para nossos corpos!", dividiam a sociedade em positiva - aqueles que compunham a mão de obra livre, trabalhadores - e negativa a massa de nacionais livres e pobres, bem como de índios e negros, considerados "um obstáculo ao progresso".


BIBLIOGRAFIA


ANTUNES, JOSÉ LEOPOLDO FERREIRA, et alii, Instituto Adolfo Lutz - Cem anos do laboratório de saúde pública, edição comemorativa, ed. Letras & Letras, São Paulo, 1992.

AZEVEDO, Aroldo de (org.). A cidade de São Paulo, Secretaria Municipal da Cultura, São Paulo, 1954.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, 12ª edição, ed. Graal, Rio de Janeiro, 1996.

O Nascimento da Clínica. 2ª edição, ed.          Forense - Universitária, Rio de Janeiro, 1980.

REVISTA CLARTÉ, em 14 de dezembro, 1921.

ROLNIK, Raquel. Cada um no seu lugar, São Paulo – Início da Industrialização - Geografia do Poder, Dissertação de mestrado, FAU - USP 1981.


Neuza Aparecida de Oliveira Peres - Militante da Apeoesp e Presidenta da Aproffib

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