Pega o Aldol
- Aldo Santos
- há 3 dias
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Por Ana Sophia Cauduro.
Jubileu acordou ensimesmado.
Não falou bom dia, não pediu banana, não mandou ninguém calar a boca. Estranhei. Mas eu também estava mais para lá do que para cá.
E eu precisava sair — fui ao centro buscar as minhas garrafas pra engarrafar o licor, porque aqui nessa casa tem sempre um bico em andamento. E eu nem tô falando dos papagaios.
No centro, parei o carro longe. Fui na fé.
Foi aí que encontrei um senhor que me perguntou se eu sabia onde era o INSS.
Na hora, não lembrei. Falei:
— Não sei.
Ele me olhou de cima a baixo, me analisando como quem calcula e conclui. E mandou:
— Você não sabe? — nem perguntou, afirmou.
Talvez por me ver de órtese e bengala, tenha pensado: Como que ela não sabe?
Respondi curta e certa:
— Não sei. Tem muita coisa que eu não sei.
E fui embora.
Cheguei em casa e encontrei Jubileu Wilson — no alto da sua sabedoria, ou apenas mergulhado em si. O papagaio só me observava. Olhar fixo, pescoço levemente inclinado, sem um pio.
Eu, assoberbada com tudo que é coisa: casa, remédio, roupa, pensamentos, gatos querendo ração especial, e essa tosse agarrada no peito feito dívida vencida.
Já fui ao médico três vezes. Já tomei antibiótico, xarope, antialérgico. Já fiz oração, simpatia e até gargarejo com vinagre e fé.
Passei por ele no corredor, nos passos de quem só quer sobreviver ao dia.
E como em casa tem sempre um olho em mim — especialmente pra essa minha tosse sequencial pré-histórica — ele me cravou:
— Tudo bem?
Respondi:
— Sei lá.
Foi aquele tipo de pergunta que vem com diagnóstico embutido.
Ele me encarou fundo, como quem vê além da carne, e sentenciou:
— Pega o Aldol.
Ri, mas rebati na hora:
— Aldol é pra quem arranca as penas, Jubileu.
Sancho, lá do fundo, gritou:
— É fogo!
E Jubileu, que não perde um debate — nem com febre, nem com metáfora — mandou logo, com desdém de intelectual:
— Ah, vá.
Fiquei ali, no meio do corredor, tossindo e rindo, sem saber se tomava um chá, um Aldol ou um banho de sal grosso.
Como dizia meu tio Miguel:
— É cada uma que parece duas.
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Nota:
Aldol é um medicamento antipsicótico, cujo princípio ativo é o haloperidol. Embora seja amplamente usado em contextos psiquiátricos humanos, no caso do papagaio Jubileu, foi receitado por um veterinário especializado em aves para tratar episódios de estresse e o comportamento de arrancamento de penas. Na casa, virou sinônimo de “cura geral”.
Ana Paula Cauduro é professora, formada em Filosofia e Pedagogia, com especialização em Filosofia Clínica.
Na escrita, dá voz a Ana Sophia — sua persona literária — para narrar com humor, lucidez e lirismo as desventuras da vida cotidiana, entre papagaios reflexivos, tosses teimosas e pequenas epifanias.
Nada como uma boa leitura para rir e refletir Acho que este papagaio é gente .Parabéns! Adoro seus textos.
Excelente texto tata ❤️
Excelente texto! Dispensa comentários Ana.
Excelente texto! Carregado de uma dose satirica de humor acompanhado de importantes reflexoes
Amo a sua escrita, minha amiga! Sempre cheia de reflexões profundas sobre os desafios da vida, e com aquela sensibilidade única que só as pessoas verdadeiramente iluminadas conseguem acessar. Você toca a gente com palavras. ❤️