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Pega o Aldol

Por Ana Sophia Cauduro.


Jubileu acordou ensimesmado.

Não falou bom dia, não pediu banana, não mandou ninguém calar a boca. Estranhei. Mas eu também estava mais para lá do que para cá.


E eu precisava sair — fui ao centro buscar as minhas garrafas pra engarrafar o licor, porque aqui nessa casa tem sempre um bico em andamento. E eu nem tô falando dos papagaios.


No centro, parei o carro longe. Fui na fé.


Foi aí que encontrei um senhor que me perguntou se eu sabia onde era o INSS.

Na hora, não lembrei. Falei:


— Não sei.


Ele me olhou de cima a baixo, me analisando como quem calcula e conclui. E mandou:


— Você não sabe? — nem perguntou, afirmou.


Talvez por me ver de órtese e bengala, tenha pensado: Como que ela não sabe?


Respondi curta e certa:


— Não sei. Tem muita coisa que eu não sei.


E fui embora.


Cheguei em casa e encontrei Jubileu Wilson — no alto da sua sabedoria, ou apenas mergulhado em si. O papagaio só me observava. Olhar fixo, pescoço levemente inclinado, sem um pio.

Eu, assoberbada com tudo que é coisa: casa, remédio, roupa, pensamentos, gatos querendo ração especial, e essa tosse agarrada no peito feito dívida vencida.

Já fui ao médico três vezes. Já tomei antibiótico, xarope, antialérgico. Já fiz oração, simpatia e até gargarejo com vinagre e fé.


Passei por ele no corredor, nos passos de quem só quer sobreviver ao dia.

E como em casa tem sempre um olho em mim — especialmente pra essa minha tosse sequencial pré-histórica — ele me cravou:


— Tudo bem?


Respondi:


— Sei lá.


Foi aquele tipo de pergunta que vem com diagnóstico embutido.

Ele me encarou fundo, como quem vê além da carne, e sentenciou:


— Pega o Aldol.


Ri, mas rebati na hora:


— Aldol é pra quem arranca as penas, Jubileu.


Sancho, lá do fundo, gritou:


— É fogo!


E Jubileu, que não perde um debate — nem com febre, nem com metáfora — mandou logo, com desdém de intelectual:


— Ah, vá.


Fiquei ali, no meio do corredor, tossindo e rindo, sem saber se tomava um chá, um Aldol ou um banho de sal grosso.


Como dizia meu tio Miguel:

— É cada uma que parece duas.



---


Nota:

Aldol é um medicamento antipsicótico, cujo princípio ativo é o haloperidol. Embora seja amplamente usado em contextos psiquiátricos humanos, no caso do papagaio Jubileu, foi receitado por um veterinário especializado em aves para tratar episódios de estresse e o comportamento de arrancamento de penas. Na casa, virou sinônimo de “cura geral”.



Ana Paula Cauduro é professora, formada em Filosofia e Pedagogia, com especialização em Filosofia Clínica.

Na escrita, dá voz a Ana Sophia — sua persona literária — para narrar com humor, lucidez e lirismo as desventuras da vida cotidiana, entre papagaios reflexivos, tosses teimosas e pequenas epifanias.

7 comentarios


Silvia Romão
Silvia Romão
há 12 minutos

Nada como uma boa leitura para rir e refletir Acho que este papagaio é gente .Parabéns! Adoro seus textos.


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Dimas Padua
Dimas Padua
há 3 horas

Excelente texto tata ❤️

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Rafael Toledo
Rafael Toledo
há um dia

Excelente texto! Dispensa comentários Ana.

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Excelente texto! Carregado de uma dose satirica de humor acompanhado de importantes reflexoes

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Bruna Karina
Bruna Karina
há um dia

Amo a sua escrita, minha amiga! Sempre cheia de reflexões profundas sobre os desafios da vida, e com aquela sensibilidade única que só as pessoas verdadeiramente iluminadas conseguem acessar. Você toca a gente com palavras. ❤️

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@ 2020 ABC DA LUTA 

OS TEXTOS PUBLICADOS SÃO DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES

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