Famílias continuam sem teto e lutadores são criminalizados
- Aldo Santos

- 18 de jul.
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Atualizado: 4 de set.

Há 22 anos, no dia 18 de julho, cerca de 400 famílias sem teto ocuparam um terreno, de propriedade da Volkswagen do Brasil, no Bairro Ferrazópolis, em São Bernardo do Campo. Tinha início uma das maiores ocupações do país, que chegou a reunir milhares de famílias, totalizando mais de 10 mil pessoas, até seu desfecho, com a violenta reintegração de posse no dia 10 de agosto de 2003.
O acampamento organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) foi batizado com o nome de Santo Dias, operário metalúrgico assassinado pela Polícia Militar, em 1979, durante uma greve da categoria. O objetivo: chamar a atenção para as necessidades e a falta de uma política de moradia popular na cidade e na região.
Apesar da repercussão do movimento, em nível nacional, mais uma vez a questão do déficit habitacional foi deixada de lado e as milhares de famílias foram escorraçadas por forças policiais, a mando das autoridades de então, na defesa dos interesses da propriedade privada e da especulação imobiliária.
Lideranças da época foram alvo de processos, julgadas e condenadas, com base em reportagens que distorciam a realidade e criminalizavam o movimento. Caso do professor Aldo Josias dos Santos, então vereador de São Bernardo, pelo Partido dos Trabalhadores, e da militante do MTST, Camila Alves Candido.
Por sua solidariedade, em socorrer idosos e crianças doentes acampados, na ocasião, disponibilizando o veículo oficial do seu Mandato, Aldo enfrentou três processos movidos contra ele. Em um deles, do Ministério Público, em 2018, foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal - STF, por improbidade administrativa. A sentença lhe valeu, entre outras punições, a perda dos direitos políticos por cinco anos e o pagamento de uma multa civil que hoje está acima de R$1,5 milhão.
Camila também foi condenada, tendo seus direitos políticos e civis suspensos e a pagar uma multa exorbitante.
Em fevereiro de 2025, por determinação judicial, Aldo Josias dos Santos, atualmente professor aposentado, recebeu mandado de Intimação e Penhora de sua casa e carro, tendo seu nome também incluído no Cadastro Nacional de Condenados por ato de improbidade administrativa na justiça brasileira.
Ironia do destino? Quem luta pelo direito constitucional de morar, perder a única casa em que habita? Com certeza não.
Para o advogado Jaime Luís Fregel Colarte Castiglioni, “Permitir que se avance sobre o lar do executado, sob qualquer argumento, não representa justiça - representa barbárie jurídica, institucionalização da miséria e violação direta dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro com os direitos humanos, tanto no plano interno quanto internacional.”
Em recente pedido protocolado ao Juízo, o advogado solicitou que além da casa, seja reconhecida a “impenhorabilidade” do carro de Aldo, um Celta, ano 2003, “... indispensável à sua sobrevivência, locomoção e manutenção de tratamentos médicos [...] reconhecendo-se a manifesta violação aos princípios jurisprudenciais constitucionais, demonstrados, Vossa Excelência determine a imediata suspensão de qualquer ato de expropriação sobre os bens supracitados - tanto o imóvel residencial como o veículo -, como forma de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais à moradia, à dignidade e à saúde do executado, evitando-se, de forma urgente, qualquer risco de alienação judicial, adjudicação, leilão ou perda patrimonial irreparável.”
Jaime Fregel protocolou também um novo pedido de revisão da condenação e reconhecimento de induto presidencial para Aldo e Camila.
O caso de Aldo e Camila é um ataque direto não apenas ao direito de lutar por moradia digna, mas também à liberdade de expressão, à organização popular e à resistência contra injustiças sociais. A condenação expõe um cenário de criminalização dos movimentos sociais, onde aqueles e aquelas que ousam questionar privilégios e defender direitos fundamentais sofrem tentativas de silenciamento por meio de processos arbitrários, perseguições e punições institucionais.
Em 2023, o escritório de Advocacia França e Castro, ingressou com recurso internacional junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e a ONU, exigindo reparação e indenização do governo brasileiro contra a violação dos direitos humanos e a repressão às lideranças populares. Além de cobrar um posicionamento internacional contra o uso do Judiciário para sufocar a luta social, assim como a reparação sofrida do ponto de vista da saúde física e mental de Aldo e Camila.
Manifestações de solidariedade
Desde a condenação dos companheiros, em 2018, e mais recentemente, neste ano, com a penhora da casa e do carro de Aldo dos Santos, crescem o apoio e a solidariedade dos vários setores da sociedade, articulados sobretudo com a criação do Comitê contra a Condenação de Aldo Santos e Camila Alves.
Multiplicam-se as manifestações de apoio de entidades sindicais e estudantis, organizações populares, parlamentares de vários partidos, nota oficial do Psol estadual e municipal, e de companheiros e companheiras que reconhecem a luta dos lutadores e lutadoras e exigem a anulação da condenação.
Em visita a São Bernardo, o deputado federal do Psol, Guilherme Boulos lembrou que “O Aldo é uma liderança de luta histórica, por moradia, da luta de esquerda brasileira. Ele foi vereador e sofreu um processo em 2003 quando houve uma ocupação do MTST num terreno da Volks. Eu era moleque, naquele momento teve uma luta muito grande, muito forte, e houve uma perseguição política contra ele, que teve bens penhorados, uma sacanagem sem tamanho. Eu quero deixar minha completa e total solidariedade ao companheiro, um lutador do povo brasileiro e que, diferente de outros que se dizem perseguidos com atitudes antidemocráticas, o Aldo não. De fato, está sendo perseguido pela sua luta, pelo seu compromisso com os trabalhadores”, justificou Boulos.
Entre os parlamentares do Psol, além de Boulos, Aldo e Camila têm recebido o apoio do deputado estadual, Carlos Giannazi, que inclusive promoveu uma audiência pública na Alesp; das deputadas federais, Luciene Cavalcante e Sâmia Bomfim, entre outros.
Segundo Aldo dos Santos, o debate que deve ser feito diante de sua condenação e de Camila Alves é o da classe trabalhadora que enfrenta a destruição de um sistema de morte - o capitalismo. “A nossa luta é para fortalecer a reforma agrária e a reforma urbana, como condição para a libertação do nosso povo, rumo à uma sociedade de liberdade, que é o socialismo.”
Carta ao presidente Lula
Em 2024, por meio de companheiros do MTST, em São Paulo, foi entregue ao presidente Lula uma carta assinada por Aldo dos Santos e Camila Alves solicitando a anistia da injusta condenação.
Cuja íntegra, segue:
CARTA AO PRESIDENTE LULA PELA ANISTIA DE ALDO SANTOS E CAMILA ALVES
“Presidente Luís Inácio Lula da Silva, eu, Aldo Josias dos Santos, professor, filósofo, escritor, militante sindical e defensor das causas sociais, tomo a liberdade de vir à sua presença para pedir, em nome da luta por direitos em favor do povo brasileiro, que tanto você quanto eu dedicamos a nossa vida, que conceda a Anistia de um processo injusto que o Estado Brasileiro move ao nosso desfavor. Processo gerado por uma ação de justiça social em que eu, migrante num pau-de-arara e filho das terras nordestinas, indignado com a miséria e ausência do Estado na atenção dos despossuídos dos direitos básicos, indispensáveis a qualquer cidadão/ã, fui condenado a uma pena perpétua, porque é impagável para um professor aposentado da rede pública estadual.
Com minha conta bancária por duas vezes bloqueada e impossibilitado de receber meu benefício e única renda, ainda sofro com ameaça de penhora do bem imóvel que serve para me abrigar. Fui julgado e condenado tão somente por disponibilizar um veículo oficial do meu mandato, enquanto vereador pelo PT em São Bernardo do Campo, para encaminhar ao hospital da cidade mulheres e crianças do Acampamento Santo Dias, necessitadas de atenção médica, em 2003. O referido movimento foi denominado pelos ocupantes de Santo Dias, em memória ao metalúrgico assassinado com um tiro na barriga em 30 de outubro de 1979, em frente à fábrica Sylvania, na zona sul de São Paulo.
São Bernardo do Campo, cidade historicamente reconhecida como nascedouro das grandes lutas dos/as trabalhadores/as nas últimas décadas, é também o berço da construção da sua história, e que por vezes cruzou com a minha trajetória de luta em defesa de moradia digna para os/as trabalhadores/as, como foi o caso da ocupação na região do Bairro Jussara, ocorrida em 3 de dezembro de 1989, cujo o reconhecimento popular batizou com a junção do seu nome com o meu, designando oficialmente o local como VILA LULALDO.
Hoje, com 71 anos, mas sem abandonar por um instante sequer a esperança de construção de um mundo justo, igualitário e com direitos básicos garantidos, tenho ainda muito a construir, não posso ficar privado dos meus direitos políticos e das condições básicas para sustentar a vida digna por uma ação da Justiça Brasileira que não levou em consideração a razão do ato, mas sim a criminalização do movimento.
Este processo teve início em 2003 numa ocupação do MTST do terreno da Volkswagen do Brasil, em frente à própria empresa situada ao lado da Via Anchieta em São Bernardo do Campo. Hoje existe no local um potente depósito das Casas Bahia. Até então, Santo Dias foi considerada a maior ocupação urbana do país, envolvendo diretamente mais de 10 mil pessoas em busca desesperada por uma moradia popular. Nesta ocasião a companheira Camila Alves era coordenadora da ocupação.
Na sentença proferida pelo ministro Alexandre de Morais, como consta na manifestação do Ministério Público, afirma que:
“Aldo Josias dos Santos (condenado à suspensão dos direitos políticos por cinco anos, ao pagamento da multa civil na quantia de dez vezes o valor da remuneração por ele percebida como agente político na época dos fatos e à proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos) e Camila Alves Cândido (condenada a pagar indenização pelos danos causados à ordem social e urbanística no valor de R$5.000,00 destinado ao fundo de reparação de interesses difusos). Segundo planilhas atualizadas o executado Aldo Josias dos Santos, sua multa hoje é de R$ 1.034.647,43 e a executada Camila Alves Cândido, o total devido é de R$ 60.052,35. Consta ainda que, ‘sendo assim, e diante do lapso de tempo decorrido, apresento planilha atualizada de débito e requeiro a penhora de bens dos executados via sistemas SISBAJUD, INFOJUD, RENAJUD e ARISP’. (Documento datado de 22 de abril de 2024)”
A anistia é nossa última esperança. Eu e Camila não cometemos crime por ajudar pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, pessoas carentes daquilo que é fundamental à dignidade humana: moradia, alimentação e saúde.
Recorremos a você, Presidente Lula, especialmente porque conhecemos o seu senso de justiça e preocupação com o povo brasileiro. Recorremos a você porque conhecemos a sua história e as injustiças que sofreu por ser quem você é e representar o que você representa.
Dessa forma, na esperança de sermos atendidos, permanecemos à sua disposição para eventual reunião e esclarecimentos dos fatos, caso julgue necessário.
Atenciosamente e com muita admiração,
São Paulo, 29 de junho de 2024.
Aldo Josias dos Santos e Camila Alves
Morar é um direito constitucional
Aldo dos Santos e Camila Alves não cometeram nenhum crime, apenas cumpriram o seu papel, ele como vereador e representante da população; ela, como militante de um movimento em defesa da moradia popular.
A falta de políticas públicas de habitação, que se arrasta há anos, não só em São Bernardo, abandona milhares de famílias à própria sorte, obrigadas a viver em áreas de risco, expostas a falta de saneamento e deslizamentos que têm vitimado tantas pessoas.
A luta pela moradia é a alternativa que resta para que o direito de ter uma casa seja efetivado. Dos movimentos apoiados por Aldo dos Santos, enquanto vereador em seu mandato comprometido com as causas sociais, muitos foram vitoriosos, garantindo a milhares de famílias o direito de morar: Novo Horizonte, Botujuru, Vila Lulaldo, Vila Natanael, Bairro Santa Cruz, Jardim Uenoyama, Parque Asa Branca, Vila Zilda, Favela Naval, Vila Natanael...
Embora com um final trágico, o Acampamento Santo Dias também teve suas lições e conquistas, centenas de pessoas que participaram desta ocupação, mesmo sendo vítimas da repressão e descaso por parte dos governantes, conseguiram moradias populares, tomaram consciência do seu papel e direitos básicos.
O repúdio e o enfrentamento à perseguição política aos movimentos e lutadores sociais crescem em nosso país e em todo o mundo nas disputas emergentes do avanço da extrema direita e da resistência da esquerda.
Venha participar das nossas lutas exercendo a solidariedade necessária para com quem vem sofrendo contra os algozes da classe trabalhadora!
Ana Valim - Jornalista e Escritora



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