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Rumo à Estação Santo André - Celso Daniel


Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel***



Pelo telefone.

Foi por aplicativo. Mas vou chamar de telefone.

- Aldo, li seu livro inteirinho dentro do trem.

- Bacana. Vai escrever uma resenha, filosófica, sociológica ou histórica?

- Acho que vai mais pela histórica, né? Que é a minha veia...

Foi mais ou menos assim.


Rumo à Estação Santo André - Celso Daniel.


Se tem uma coisa que eu gosto de viajar de trem, é o fato de não conduzir nada, livre dessa responsabilidade. E se tem algo que detesto é não carregar um livro junto comigo. Não há nada que substitua um livro. E dessa vez, de Caieiras até a Estação Celso Daniel–sim, eu faço questão desse nome-o livro da vez foi a última publicação do Aldo, “Rumo à Estação Catanduva”.


Rumo à Estação Catanduva.


Vai aqui o texto em primeira pessoa, quase como carta para o Aldo. Não vou conseguir de outro jeito.

Aldo, há tantos anos que te conheço, e sempre percebi você mais fechado que a maioria das pessoas. Também havia notado seu vegetarianismo, numa época em que eu achava isso uma besteira. Em alguma greve quando a Apeoesp de São Bernardo ainda era na Prestes Maia. A Lucimara fazia o pedido de quentinhas para quem estava participando do comando de greve e a sua tinha que ser vegetariana.

Às vezes, bem às vezes, te achava um pouco hipocondríaco. Menos durante a pandemia antes das vacinas. Não, aí não achei foi nada, achei é que você estava certo.

Difícil de abraçar e beijar. Enquanto uns por aí até se exibem demais, você se fecha. “Rumo à Estação Catanduva” explicou muito a seu respeito.

Antes de mais nada, fiquei muito feliz por você. Por ter lançado mais um livro? Talvez. Mas a cereja do bolo foi o reencontro com a sua própria história, e acredito que você tenha tido uma oportunidade enorme de elaborar e formular muito do seu passado.

Trabalho na roça. Lidar com veneno sem EPI. Agora toda vez que eu leio algo de trabalhadores intoxicados por agrotóxicos, lembro de você. Que susto. Por bem pouco você não foi pro saco, a gente ia morrer sem conhecer seu nome, você seria mais um jovem que morreu trabalhando no campo, talvez não entrasse nem para estatística. E quantos não entraram, quantos anônimos morreram nessas terras sem fim do país continente?

Imagino o desespero de fome para raptar uma galinha alheia, depenar, matar e cozinhar. Comer clandestinamente, como se fosse um crime. E era. Mas não era. Lembrei de Victor Hugo, sabia? Daí seria a gênese, a semente do seu vegetarianismo? Pois toda fome é bárbara, e para mata-la, antes que ela nos mate, somos capazes de atos que não pensamos antes.

Internação. Quantos grupos eram seccionados da sociedade até poucas décadas atrás? Tuberculosos, leprosos, loucos. Cada rótulo, um confinamento. Cada classificação, uma direção. Cada vaticínio, uma estrada. Às vezes sem volta. Quantos jamais retornaram para casa? Quantos não foram riscados da própria família? Eram inúmeros os grupos de seres humanos relegados ao expurgo. E nisso, é inegável quantos passos demos para frente na Medicina e nos Direitos Humanos.

Imagino teu coração, quantas vezes deve ter batido mais acelerado, tão jovem, sem conhecer a vida, longe dos pais. Ah, a família. Você cita tanto a preocupação com os seus pais e irmãos que dá até pra sentir o tanto que tem de amor envolvido. Muitos acusam, que nós socialistas, não queremos a família, que somos contra a família, que queremos a destruição da família. Quanto engano! Socialistas amam tanto a família que querem ver a família bem alimentada, bem cuidada, morando num bom local, feliz da vida, se reunindo. E sem a hipocrisia reinante em tantos discursos burgueses da direita que grita uma palavra e pratica outra.

A sua história é a história de milhares, de milhões. Quantos Aldos temos por aí? Lembrei também da música do Chico Buarque, “Brejo da Cruz”. Mas por que então temos um Aldo Santos? Somente a comunhão da História com outras ciências pode explicar isso. A formação familiar, coisas que você ouviu, como reagiu frente aos acontecimentos, a força para lutar no despertar da consciência de classe. Tudo isso forjou Aldo Santos.

Todos nós carregamos fantasmas. Até Marx reconheceu isso. Freud, Sartre. Cada qual ao seu modo. Mas todos sabem que cada um de nós carrega uma bagagem, uma malinha. Sim, essa malinha vai com a gente para onde formos. A questão é como usamos o que tem dentro dela. Porque não existe apagar essa bagagem com uma borracha.

Viaja livre, Aldo. Aliás, você já viajou. Escolheu os rumos da sua vida. Nas lutas, nos movimentos populares, nos sindicatos, associações, graduações, pós graduações, partidos políticos. Esteve ao lado, bem perto, lutou junto, com outros que vieram de lugares não tão diferentes do seu na história pessoal. Escreveu seu nome nas lutas. Deixou teu rosto no rosto dos seus filhos e dos seus netos.

Foi rumo à Estação Catanduva. Mas hoje podes viajar para a estação que quiser, sobrevivente Aldo Santos.


Caieiras, 17 de junho de 2022.


Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel

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