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Por quê com o Pelé?


Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel

Historiadora, Professora***



Edson Arantes do Nascimento foi um “ponto fora da curva” em muitos aspectos. Quantos meninos como ele, nascidos e crescidos em meio a pobreza, filho de pais sem titulações acadêmicas, vindo de uma região interiorana e negro, sonharam loucamente com um sucesso em grandes campos de futebol e jamais chegaram a realizar este desejo? Quantos talentos perdemos Brasil afora todos os dias, não só no esporte, mas em todas as áreas do conhecimento humano por divisão de classes sociais, cor e gênero? Jamais saberemos.

Sua trajetória foi espetacular. No literal. Ele era um espetáculo por si só jogando bola. Habilidoso, genial, focado. Ele não viveu a geração “gourmet”, ou “Nutella”. Obvio que com o passar dos anos ele acumulou patrimônio, recebia assistência médica especializada para atleta, se hospedava em lugares longe de serem “espeluncas”, foi convidado para comerciais e capas de revistas. Mas uma pesquisa rápida pode comprovar que os valores recolhidos por jogadores da sua geração estavam muito aquém dos valores atuais do mundo do futebol.

Nunca foi novidade para ninguém que a cultura do futebol é uma cultura machista. E continua sendo. Independente do Pelé ter existido ou não no meio dessa história. O futebol feminino, por exemplo, ainda é visto com desprezo no Brasil. A arbitragem feminina até hoje encara rejeição e xingamentos misóginos nos estádios.

Pelé jogou o que eu aprendi a chamar de “futebol arte”. Ele não foi o único da geração ainda sem as camisas que mais parecem outdoors ambulantes correndo pelo campo. Que vivem em baladas intermináveis, publicidades milionárias, bife ou sei lá o que com pó de ouro, processos por sonegação de impostos, testes de paternidade, e outros processos ainda piores, como estupros.

E é exatamente nesse campo que eu quero rolar a bola. Por quê com Pelé?

Um rápido exame histórico de alguns nomes exponenciais do futebol brasileiro são de arrepiar a alma e revirar o estômago. Eu sei, ou pelo menos acredito que sei, um pouco a respeito da memória do brasileiro. É de amargar. O então goleiro do Flamengo, Bruno de Souza, foi preso em 2010 e condenado por matar e desaparecer com o corpo de um ex-relacionamento. Eliza Samudio. Uma jovem adulta de 25 anos que engravidou do goleiro que não aceitava que o filho era seu e resolveu dar um fim à história simplesmente eliminando a vida, o corpo, a identidade, o direito de uma criança ter mãe, o direito de uma mãe a ter a filha. Diferentemente de Pelé, não houve teste de DNA e processo na justiça. Onde está Bruno hoje? Cumpriu apenas ridículos seis anos em regime fechado e está em regime semiaberto e já foi empregado por diversos clubes, onde foi assediado por fãs que pediram fotos e autógrafos. Sem contar um casamento.

A história do atual técnico Cuca também é horrível. Ele ficou preso na Suíça por participar de um estupro coletivo de uma menina de 13 anos de idade que invadiu a concentração atrás de camisetas, souvenirs e autógrafos. Cuca era um jovem jogador do Grêmio que chegou a afirmar que teve a impressão que a vítima tinha 18 anos de idade. Aliás, a vítima foi a culpada de tudo, segundo a opinião pública e segundo a imprensa da época. Um jornalista chegou a escrever algo asqueroso como “Vamos receber nossos doces devassos” quando do retorno dos jogadores ao Brasil. Claro, uma menina de 13 seduziu quatro homens adultos então ela foi culpada por tudo. Emendando um caso no outro, quando o jogador Robinho foi preso também por estupro na Itália, Cuca prontamente saiu na sua defesa.

Numa breve saída do mundo futebolístico, alguém conhece a história de pai do grande poeta Pablo Neruda? Do relacionamento do ator Marlon Brando com seus filhos e também de seu ato de estupro? Além do mesmo com o aclamado diretor de cinema Roman Polanski?

Aí voltamos ao Pelé. Parece que toda a sua história foi apagada com uma borracha. A história do menino pobre, negro, saído do interior, que ganhou os campos de futebol, que levou o nome do futebol brasileiro em nível internacional, que ganhou copas do mundo, que deixou o brasileiro orgulhoso, que virou adjetivo de talento em outros países. Do homem que foi considerado o atleta do século. Um erro, para uma vida toda apagada.

Uma história envolvendo batalha judicial para o reconhecimento de uma filha renegada. Seguida, não muitos anos após, da morte precoce da moça. Seguido de outro reconhecimento de paternidade muito mais leve e tranquilo.

Ele errou? Filho se assume, não se renega. Pelé tinha lá as explicações dele. O fato é que, quando percebeu que estava no crepúsculo da vida, chamou todos os seus filhos e netos, que prontamente compareceram. Inclusive os filhos da filha renegada. O depoimento destes jovens foi comovente. Que apesar de um dia muito triste, foi maravilhoso. Pelé pediu perdão e foi perdoado por quem deveria ser perdoado. Mas a opinião pública, não. A opinião pública prefere esquecer da Eliza Samudio, prefere passar pano para o Cuca, prefere não enxergar a sonegação de impostos de outros.

Foi horrível ver a ausência de tantos tetra, penta, ou sei lá o que campeões, no velório daquele que abriu as portas de muita coisa para as futuras gerações de futebolistas. A ausência de técnicos também não passou despercebida.

Talvez eu goste muito mais do Pelé hoje do que há alguns anos atrás. Talvez o avançar da idade tenha me trazido novas compreensões e maiores possibilidades de perdões, para aqueles que o pedem para erros que não foram hediondos.

Descansa em paz, Pelé, descansa em paz, Edson Arantes do Nascimento. Sei o quanto você gostava de fazer graça dizendo quando era um, e quando era o outro falando. Encontra teu colega Garrincha, outro artista da bola, com quem jamais perdeste um único jogo quando estavam vestindo a mesma camisa. E que também foi desprezado na hora da passagem.


Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel

Historiadora, Professora, YouTuber e Criadora de Conteúdo Digital

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