Entre o Farol e o Chão de Barro
- Aldo Santos

- 6 de ago.
- 5 min de leitura

Hugo Allan Matos***
A história da Ocupação Santo Dias, em 2003, é a crônica de uma luta que se recusou a ser invisível, um movimento que marcou a ferro e fogo o solo de São Bernardo do Campo e a consciência de uma geração. Ela não foi um evento único, mas um êxodo, uma jornada de resistência que se desdobrou em atos e lugares, da esperança inicial em um terreno vazio à repressão e, por fim, à semente de futuras mobilizações.
Ato I: A Cidade de Lona no Terreno da Volks
Tudo começou no dia 19 de julho de 2003. Em um gesto de ousadia e desespero organizado, cerca de 800 famílias, coordenadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), deram vida a um vasto terreno de 200 mil m² pertencente à Volkswagen, na Avenida Doutor José Fornari. Em menos de uma semana, o acampamento explodiu em tamanho e significado, tornando-se uma cidade de lona para mais de 3 mil famílias, chegando a um pico de quase 10 mil pessoas. Eram trabalhadores, desempregados e famílias inteiras esmagadas pela especulação imobiliária e pela falta de políticas públicas de moradia na região. A ocupação, batizada em homenagem ao líder operário Santo Dias da Silva, tornou-se o epicentro da luta social no país, atraindo apoio e gerando uma enorme tensão política e midiática.
A resposta da Volkswagen e do poder público foi rápida e dura. A empresa entrou com um pedido de reintegração de posse, que foi concedido pela Justiça. Após dias de negociações tensas e sob a sombra da violência — marcada pelo trágico assassinato do repórter fotográfico Luís Antônio da Costa no local —, a desocupação foi marcada. Na madrugada do dia 7 de agosto, um aparato de guerra com centenas de policiais da Tropa de Choque, cavalaria e cães cercou o terreno. A resistência pacífica dos ocupantes foi vencida pela força e a cidade de lona foi desfeita. O sonho de milhares de pessoas foi, momentaneamente, transformado em escombros.
Ato II: A Ocupação da Praça e o Silêncio da Igreja
Expulsos do terreno, os sem-teto não se dispersaram. Em um ato de grande impacto simbólico, eles marcharam e ocuparam o coração cívico e religioso da cidade: a Praça da Matriz. Ali, em frente à Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, o drama dos desabrigados ficou exposto no centro do poder. A praça, que nas greves históricas dos anos 80 fora um santuário para os operários em luta, tornou-se palco de um novo tipo de confronto.
É neste ponto da jornada que a memória pessoal se funde à história coletiva:
Há memórias que não se apagam; elas se tornam o solo sobre o qual nossa alma caminha. A Ocupação Santo Dias, em 2003, é um desses territórios sagrados em minha mente. Foi um momento de epifania coletiva, uma fenda no tempo onde o futuro pareceu, por um instante, tangível.
Ali, no meio do barro, do plástico preto e do pão dividido, a presença do sagrado era palpável. Eu vi o rosto de Cristo na resiliência daquelas famílias, na sua teimosia em existir com dignidade. Eram os mesmos rostos que a história tantas vezes tentou apagar. Essa experiência tornou-se ainda mais cortante em contraste com a instituição que deveria ser o seu refúgio. Recordo-me vivamente do debate que se seguiu, uma troca de artigos que travei nas páginas do Diário do Grande ABC, questionando publicamente o papel de uma Igreja que, ao fechar suas portas para o povo pobre em luta, afastava-se de sua própria essência evangélica.
Aquele acampamento ecoava em minhas próprias paredes internas. Revivia em mim a criança do Jardim Regina, que via a água da chuva subir pelo chão de terra do barraco. Trazia de volta o cheiro do cortiço atrás do bar do meu avô e a angústia nômade de mudar de casa três, quatro vezes ao ano, sempre expulso pela ganância de um aluguel impagável. A dor daquelas três mil famílias era a minha dor, a dor de um povo.
Por isso, a Ocupação Santo Dias foi muito mais que um movimento por moradia. Foi um farol. Ela nos mostrou um método, um caminho de poder para os despossuídos que reverbera até hoje. Aquela experiência forjou em nós, na prática, a tese que viria a ser vitoriosa em outros levantes sociais, como o do Movimento Passe Livre: a força da pauta única para agregar, a necessidade da centralização para organizar, a tática da ocupação para visibilizar e a alma da resistência para prevalecer.
Bebeu da fonte de movimentos anteriores, como o MST, e ensinou a toda uma geração que a única resposta possível à fragmentação e ao esvaziamento da política era a união radical em torno de uma demanda concreta e inegociável. Ali, aprendemos que a luta não se terceiriza. Ela se faz com o corpo, no território, na construção diária de uma nova realidade. Ali, a terra prometida não era um lugar geográfico, mas a própria comunidade em luta, tecendo com as próprias mãos a sua libertação.
Ato III: O Acolhimento na Gaviões e o Desfecho
Após a forte pressão para desocupar a Praça da Matriz, o movimento encontrou um abrigo inesperado e potente: a quadra da escola de samba Gaviões da Fiel, em São Paulo. A transferência de centenas de famílias para a sede da torcida organizada foi um gesto de solidariedade que demonstrou a amplitude e a diversidade das redes de apoio aos movimentos sociais. Na quadra, as famílias puderam se reorganizar temporariamente e manter a chama da mobilização acesa, enquanto as lideranças buscavam uma solução definitiva junto ao poder público.
O resultado direto da Ocupação Santo Dias não foi a conquista daquele terreno específico da Volkswagen. No entanto, a sua força e visibilidade obrigaram os governos a agir. A luta resultou na inclusão de milhares de famílias em programas habitacionais nos anos seguintes e, principalmente, consolidou o MTST como um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil. A ocupação foi uma escola, formando militantes e estabelecendo um método de luta que inspiraria inúmeras outras ações pelo país.
O Preço da Luta: A Criminalização e as Condenações
A luta, contudo, teve um preço alto para suas lideranças. O sistema judicial moveu-se para criminalizar o movimento. O então vereador de São Bernardo, Aldo dos Santos (PT), que apoiou ativamente a ocupação, e a coordenadora do MTST, Camila Alves, foram processados. Em 2011, foram condenados em primeira instância por "formação de quadrilha", uma decisão que foi amplamente vista como uma tentativa de intimidar e deslegitimar a luta por moradia. A sentença buscava transformar um movimento social legítimo em um caso de polícia, uma tática recorrente para frear a organização popular. A condenação de Aldo e Camila é a cicatriz que comprova a ousadia e a importância histórica daquela jornada que começou em um chão de barro e se tornou um farol de resistência.
Hugo Allan Matos - Atua como professor de filosofia na PUCPR e no ICL. Doutorando em Filosofia (UFABC), Mestre em Educação (UMESP), Pós-graduado em Filosofia e História Contemporâneas (UMESP), Licenciado em Filosofia (PUCPR-UMESP) e Pedagogia (FPSJ). Leciona disciplinas ligadas à Teologia, Filosofia, Educação, Antropologia Filosófica e Teológica, Ética e Tecnologia. É casado, pai, judoca...



Temos que continuar a luta por moradia digna para todos e também na defesa de nossos companheiros Aldo Santos e Camila Alves! Lutar não é crime!