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Construindo o Futuro a Partir da Memória Ativa  

Atualizado: 10 de ago.


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Dr. Jaime Fregel Castiglione***


Assunto: Análise Detalhada sobre Ação Popular e a Relevância da Memória Histórica e Cidadania Ativa em São Bernardo do Campo.

 

Prezados(as) Senhores(as),

 

O presente documento visa aprofundar a análise de um tema de profunda relevância para a nossa sociedade: a memória histórica e o papel da cidadania ativa na sua proteção. Para tanto, faremos isso através da análise de um caso concreto, uma Ação Popular impetrada em São Bernardo do Campo, que nos convida a refletir sobre como o passado se manifesta no presente e influencia o nosso futuro.

 

### O Poder da Memória e a Ação Popular: Uma Luta por um Futuro Democrático

 

#### 1. O Caso em Pauta: Nomes de Ruas que Chocam e Dividem

 

O documento que estudamos é uma Ação Popular e a sua réplica, movida por um cidadão, que é também advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São Bernardo do Campo. O cerne da questão é o pedido para que o Município altere os nomes de três logradouros públicos que, segundo o autor, homenageiam figuras e eventos ligados a graves violações de direitos humanos e a regimes autoritários:

 

*   Vila Mussolini: Uma clara referência a Benito Mussolini, o ditador fascista da Itália, responsável por um dos regimes mais violentos e opressores do século XX. O documento da própria prefeitura de São Bernardo do Campo, citado na réplica, confirma que o nome homenageava explicitamente o líder fascista quando do loteamento em 1928, e que outras ruas do bairro também levavam nomes de figuras ligadas ao fascismo italiano. Isso desmente a defesa do município que alegava "mera presunção" ou ausência de ligação.

*   Avenida Humberto de Alencar Castelo Branco: Homenageando o primeiro presidente do regime militar brasileiro, que assumiu o poder após o golpe de 1964. O documento da Ação Popular mostra que a própria justificativa legislativa da época para a mudança do nome de uma avenida, em 1968, confessava o "destacado" papel de Castelo Branco como "um dos líderes da Revolução de 31 de março".

*   Avenida 31 de Março: Remete diretamente à data do golpe militar de 1964, que instaurou a ditadura no Brasil. A análise da Ação Popular revela que a nomeação dessa avenida em 1966 utilizava termos laudatórios como "Revolução Redentora" e "movimento revolucionário democrático, redentor de nossa pátria", evidenciando a intenção de glorificar o golpe.

 

A persistência desses nomes não é um fato neutro. Eles são símbolos vivos que perpetuam a memória e a ideologia de regimes que atropelaram a democracia e violaram direitos fundamentais. A resistência do Município em mudar esses nomes, conforme argumentado na Ação Popular, configura uma omissão administrativa que precisa ser corrigida judicialmente.

 

#### 2. O "Direito à Memória e à Verdade Histórica": Por que é Essencial para a Democracia?

 

Aqui entramos no coração do debate. A Ação Popular se fundamenta no que chamamos de "direito à memória e à verdade histórica". Mas o que significa isso para nós, cidadãos comuns e estudantes?

 

*   Não é sobre "apagar a história", mas sobre recontá-la corretamente: A memória não pode ser seletiva. Ela deve ser um instrumento de aprendizado e reflexão crítica, não de glorificação de torturadores ou regimes de exceção. Manter esses nomes não é preservar a história; é validar uma narrativa autoritária. O documento argumenta que o silêncio e o esquecimento de barbáries geram lacunas na construção da identidade nacional.

*   A Dignidade da Pessoa Humana: Nossos valores democráticos, consagrados na Constituição, colocam a dignidade da pessoa humana como fundamento principal. Homenagear aqueles que desrespeitaram, torturaram e mataram em nome de uma ideologia é uma afronta direta a esse princípio fundamental. O documento enfatiza que a manutenção de logradouros com tais homenagens "conspurca a memória" das vítimas e ofende os valores democráticos.

*   Prevenção de Novas Violações: A história nos ensina que o silêncio e o esquecimento abrem caminho para o ressurgimento de ideologias autoritárias. Quando não confrontamos criticamente o passado, criamos um ambiente onde as ideias autoritárias podem ressurgir. O documento lembra que a Lei 12.528/11 (Lei da Comissão Nacional da Verdade) tem como objetivo "prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição".

    *   Nesse sentido, é importante mencionar que o documento da ação cita uma pesquisa nacional realizada em 2019, que indicou que cerca de 90% dos cidadãos brasileiros desconheciam o que foi o "Ato Institucional nº 5" (AI-5), um dos símbolos mais repressivos da ditadura militar brasileira, além de todo o conteúdo sobre a Vila Mussolini, Humberto Alencar Castelo Branco e 31 de Março.  Essa informação ressalta a importância de trabalhos de pesquisa histórica e educacional para o aprofundamento da memória coletiva. Pesquisa elaborada pelo  professor historiador, Diego Cana, cuja a área de atuação se alinha perfeitamente com a necessidade de fomentar essa consciência crítica da história.

*   Formação Cidadã: O espaço público, incluindo os nomes de ruas, tem uma função simbólica e educativa. Manter homenagens a ditadores e eventos de golpe é "educar" para a banalização do autoritarismo, enfraquecendo a consciência crítica das novas gerações sobre a importância da democracia e dos direitos humanos.

 

#### 3. Memória e a Ascensão da Extrema Direita: Um Alerta do Passado para o Presente

 

Este caso, apesar de local, possui uma ressonância profunda no cenário político atual. A Ação Popular contextualiza a importância de lidar com o passado autoritário em um momento de ascensão de discursos e movimentos de extrema direita no Brasil e no mundo.

 

*   A Normalização do Autoritarismo: Quando o Estado e a sociedade falham em remover símbolos de regimes violentos, há uma normalização gradual dessas ideologias. A defesa do município, ao negar a ligação óbvia dos nomes com figuras autoritárias, tenta desqualificar a questão, o que o documento da Ação Popular chama de "anacrônico com os tempos vividos". Essa negação alimenta a narrativa de que "não foi bem assim" ou que os fatos "são presunções", minando a verdade histórica.

*   O Perigo do Negacionismo: O documento cita a fragilidade da nossa memória coletiva e a facilidade com que narrativas revisionistas podem se espalhar, especialmente quando figuras públicas e instituições se omitem ou relativizam a violência do passado.

*   Alimentando a Radicalidade: Manter homenagens a Mussolini, Castelo Branco e ao golpe de 1964 não é apenas uma questão de urbanismo; é um ato que, como destacado na réplica, "dá incentivos à radicalidade" e permite que células da sociedade "prosperem numa sinergia da INSANIDADE". A Ação Popular argumenta que esses símbolos são uma "afronta às obrigações internacionais" do Brasil e uma "glorificação de um período de autoritarismo". Remover essas homenagens é um passo ativo para deslegitimar o discurso de ódio e a intolerância, defendendo a democracia.

 

#### 4. Fundamentos Jurídicos: A Lei ao Lado da Memória e da Democracia

 

Para que leigos e estudantes compreendam, os fundamentos jurídicos são pilares que sustentam a exigência da mudança desses nomes:

 

*   Constituição Federal de 1988 (CF/88): É a nossa "lei das leis".

    *   Art. 1º, III - Dignidade da Pessoa Humana: É a base de tudo. Qualquer ato que viole a dignidade humana, como homenagear torturadores, é inconstitucional. O documento argumenta que a manutenção desses nomes viola frontalmente os valores axiológicos da Carta Magna.

    *   Art. 3º - Objetivos da República: Construir uma sociedade livre, justa e solidária. Uma sociedade que homenageia opressores não é justa nem solidária.

    *   Estado Democrático de Direito: A CF/88 estabelece que somos uma democracia. Atos que exaltam ditaduras ou ditadores são incompatíveis com esse modelo. O documento defende que a ação busca reparar as graves sequelas históricas e reafirmar a supremacia constitucional.

 

*   Lei da Comissão Nacional da Verdade (Lei nº 12.528/2011):

    *   Essa lei criou a Comissão da Verdade, com o objetivo de esclarecer as violações de direitos humanos do período ditatorial. A Ação Popular está em total sintonia com o espírito dessa lei, que busca a verdade histórica e a não repetição dos abusos. É uma forma de o Estado "honrar o compromisso com a verdade histórica".

 

*   Tratados Internacionais de Direitos Humanos:

    *   O Brasil é signatário de documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos). Ao assinar esses tratados, o Brasil se comprometeu a proteger os direitos humanos e a memória das vítimas. O documento da Ação Popular destaca que a omissão do Município fere as obrigações internacionais do Brasil, pois esses tratados impõem ao Estado a responsabilidade de "assegurar a memória histórica, a reparação das vítimas e o respeito à dignidade humana".

 

*   Ação Popular (Lei nº 4.717/1965 e Art. 5º, LXXIII, CF/88):

    *   Esta é uma ferramenta poderosa do cidadão. O Art. 5º, inciso LXXIII da Constituição Federal, garante a qualquer cidadão a possibilidade de propor Ação Popular para anular atos que sejam lesivos ao patrimônio público.

    *   O que é patrimônio público? Não é só dinheiro ou bens materiais. É também o patrimônio imaterial, moral, histórico e cultural da sociedade. Homenagear figuras que violaram direitos humanos é, sim, uma lesão a esse patrimônio moral e histórico.

    *   No caso, a omissão da prefeitura em alterar os nomes, mesmo diante de evidências e apelos, configura um act lesivo e um abuso de poder. A Ação Popular é, portanto, a via legítima para que o Judiciário intervenha e corrija essa inércia administrativa, garantindo que o Poder Público atue em conformidade com a Constituição e os tratados internacionais. A jurisprudência, inclusive, tem se mostrado favorável ao direito à memória, como o caso do Instituto Vladimir Herzog, citado na Ação Popular como paradigma.

 

#### 5. A Relevância da Ação Popular: Uma Voz da Cidadania Ativa

 

O documento demonstra que, antes da Ação Popular, houve inúmeros apelos e reuniões com o Executivo Municipal, mas as manifestações se limitavam a verbalizações contrárias, sem qualquer documento formal ou ata. Essa omissão persistente da Administração Pública em atender aos anseios dos movimentos sociais locais tornou a Ação Popular a única via efetiva para buscar a reparação.

 

É crucial destacar que essa não é a primeira vez que a comunidade de São Bernardo do Campo busca a alteração desses nomes. O documento revela um histórico de omissão e contradição por parte do poder público municipal. Um exemplo notável é o Projeto de Lei nº 82/2002, de autoria do então Vereador Aldo Josias dos Santos. Esse projeto propunha, especificamente, a alteração do nome da "Vila Mussolini" para "Vila Olga Benário". No entanto, a propositura foi obstruída e arquivada sob a alegação de "vício de iniciativa" por parte da Assessoria da Câmara Municipal.

Essa situação é exemplificativa da inércia e da má-fé do poder público, que usou argumentos processuais para impedir uma mudança moralmente necessária. Essa omissão deliberada é precisamente o que a presente Ação Popular busca corrigir, demonstrando que o problema não é a falta de propostas da sociedade civil, mas a resistência da Administração.

 

A Ação Popular aqui se revela como:

*   Um instrumento de controle social sobre a Administração Pública.

*   Uma forma de participação cidadã na defesa de valores democráticos e direitos humanos.

*   A garantia de que a inércia ou a má-fé do poder público não prevaleçam sobre os princípios constitucionais.

 

Não se trata de uma "interferência indevida" do Judiciário no Executivo, mas sim de uma fiscalização da legalidade e da constitucionalidade dos atos (e omissões) administrativas. A tese de que a lei não pode ser "retroativa" é refutada pelo autor, que esclarece que o que se discute não é o ato de nomeação em si, mas a permanência e a perpetuação da homenagem hoje, sob a égide da Constituição de 1988.

 

#### Conclusão: Construindo o Futuro a Partir da Memória Ativa

 

Mudar os nomes dessas ruas não é um capricho, mas um imperativo moral e jurídico. É um ato de justiça com o passado, um compromisso com o presente e um investimento no futuro. Ao remover essas homenagens, São Bernardo do Campo, e por extensão o Brasil, reafirma que:

 

*   Não compactua com a violência e a opressão.

*   Valoriza a dignidade humana acima de qualquer ideologia autoritária.

*   Reconhece o direito à memória das vítimas.

 

A Ação Popular nesse contexto é um exemplo vívido de como a cidadania ativa, respaldada na lei, pode transformar a realidade e garantir que nossos espaços públicos reflitam os valores de uma sociedade que aprende com seus erros e constrói um futuro genuinamente democrático. A memória é, e sempre será, o alicerce para um futuro mais justo e livre.

 

Muito obrigado !


Jaime Fregel Castiglione.

Advogado - Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SBC




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