Professor Fagundes***
O Papel dos Adultos na Nutrição da Linguagem Infantil: Promovendo o Desenvolvimento Cognitivo e Cerebral.
Há um indicador crucial que pode determinar o futuro intelectual, social e econômico de um ser humano, e isso pode ser observado por volta dos três anos de idade: A LINGUAGEM. A linguagem é fundamental para o entendimento humano. Enquanto os animais podem se comunicar conosco através de barulhos, gestos e sons, os seres humanos têm uma habilidade única e mais refinada na linguagem. Em nosso idioma, por exemplo, existem cerca de 370 mil palavras, e muitas pessoas dominam mais de uma língua. Essa capacidade humana é extraordinária; nenhum outro animal pode ler um livro ou entender uma língua como nós. As crianças, especialmente as bem pequenas, chegam a este mundo com uma incrível capacidade de aprender palavras e entender a essência da linguagem. Antes mesmo de nascerem, seus cérebros passam por um aumento significativo na capacidade de aprendizado, o que indica que os bebês estão programados para aprender diferentes idiomas. No entanto, o papel mais crucial no desenvolvimento da linguagem é desempenhado pelos adultos que as cercam, como mães, cuidadores, professores e pais, que fornecem a base para a nutrição da linguagem desde os primeiros momentos de vida.
Para contextualizar esse conceito, trago uma análise da pesquisa conduzida por Hart e Risley nos Estados Unidos, que revela a importância crucial da interação entre pais ou cuidadores e bebês desde os primeiros meses de vida. Em um trabalho pioneiro, esses pesquisadores, envolvidos na guerra contra a pobreza, identificaram uma lacuna crucial nas intervenções educativas relacionadas ao desenvolvimento da linguagem infantil. Os resultados de sua pesquisa destacaram o papel fundamental da interação verbal precoce no desenvolvimento neurológico e cognitivo das crianças, ressaltando a necessidade de intervenções que promovam essa interação desde os estágios iniciais da vida. Embora algumas iniciativas mostrassem resultados positivos, eles reconheceram que o aspecto mais fundamental estava sendo negligenciado. Determinados a investigar mais profundamente, decidiram realizar um estudo intensivo, observando 42 famílias de diferentes contextos sociais – famílias provenientes de uma cultura elevada, da classe trabalhadora e pobres. Durante meses, dedicaram-se a analisar a interação entre pais e filhos, desde os primeiros meses de vida das crianças até o final do terceiro ano do ensino fundamental. O que descobriram foi revelador: a quantidade e qualidade da interação verbal entre pais e filhos tinham um impacto significativo no desenvolvimento da linguagem das crianças. As crianças provenientes de famílias que proporcionavam uma interação mais rica e intensa tinham um vocabulário muito mais amplo em comparação com aquelas que não o faziam. Por exemplo, as crianças de famílias consideradas profissionais (com um nível de diálogo e interação mais elevada) ouviam cerca de 30 milhões de palavras a mais do que as crianças de famílias pobres (nível cultural baixo e com pouco diálogo) até o final dos três primeiros anos de vida.
Os dados reais revelaram uma diferença notável: crianças de famílias que enfatizavam a interação e o diálogo foram expostas a um total de 41 milhões de palavras nos três primeiros anos de vida, enquanto as crianças de famílias que não priorizavam a interação e o diálogo foram expostas a apenas 11 milhões de palavras durante o mesmo período.
Hart, B., & Risley, T. R. (1995)
Essa diferença não estava relacionada à condição financeira, raça ou local de moradia, mas sim à qualidade e quantidade de interação verbal proporcionada pelos pais. A pesquisa também mostrou que, enquanto as famílias consideradas de cultura mais elevada interagiam constantemente com seus bebês, conversando sobre tudo, desde a troca de fraldas até expressões de amor, as famílias pobres falavam significativamente menos, privando assim as crianças de uma nutrição linguística adequada para um desenvolvimento completo e saudável. Perceba que este contexto nos remete à plasticidade cerebral, um conceito que abordei em meu primeiro artigo sobre o tema. A pesquisa destaca a importância fundamental do diálogo, da interação e do apoio emocional para o desenvolvimento neurológico do cérebro, enfatizando sua capacidade plástica e moldável de adaptação. É sabido que o desenvolvimento físico real do cérebro depende das palavras; cada vez que uma palavra é dita, ocorre um aumento no número de neurônios, conexões neurais são fortalecidas e vias de interligação entre neurônios são construídas através de neurotransmissores. Quanto mais essas palavras são repetidas, mais neurônios são estimulados e mais fortes as vias se tornam, ramificando-se e criando a capacidade de aprendizado. Por outro lado, se essas palavras não são ditas, o oposto é verdadeiro: não haverá ramificação, vias neurais não serão formadas, a produção de neurônios e sua interconexão através de neurotransmissores não ocorrerá. A poda de neurônios é vista como um risco claro devido à falta de estímulos, resultando em um cérebro empobrecido do ponto de vista criativo. Esses aspectos ressaltam a importância crucial do ambiente e das interações verbais na formação do cérebro e no desenvolvimento infantil.
Ao analisarmos a pesquisa e contrastarmos com o desenvolvimento cerebral na infância, torna-se evidente o impacto da interação humana em comparação ao uso de telas. Ao final do estudo, um dado surpreendente e alarmante emerge: após três anos, bebês provenientes de famílias com pouca interação verbal conheciam cerca de 500 palavras, enquanto aqueles cujos pais estabeleciam mais diálogos sabiam o dobro, ou seja, mil palavras. Esse fenômeno, que podemos denominar de "nutrição da linguagem", ressalta a importância crucial da linguagem para o desenvolvimento cerebral. A linguagem não apenas promove a aprendizagem humana, mas também alimenta o crescimento neuronal, essencial para o desenvolvimento do cérebro. Portanto, o cérebro é altamente dependente da linguagem, o que influencia diretamente habilidades como leitura, interpretação e raciocínio, assim como o desempenho nas etapas educacionais posteriores, desde a educação básica até o ensino superior. É notável que a importância do aprendizado da leitura e a nutrição linguística produzem efeitos profundos a longo prazo. Além disso, a pesquisa revelou que, a longo prazo, as crianças expostas a um vocabulário mais rico apresentaram maior facilidade em testes padronizados na terceira série.
Podemos questionar: por que esse marco é tão crucial? Nós, que atuamos na área da educação, compreendemos a importância significativa do terceiro ano no processo de aprendizagem dos nossos estudantes. Até esse estágio, aprendemos não apenas a decifrar as letras, mas também a compreender o significado do que lemos. No entanto, após o terceiro ano, a dinâmica muda: passamos a ler para aprender. Se um aluno não adquire as habilidades de leitura até esse ponto, ele enfrenta dificuldades em compreender textos, interpretar informações e acompanhar seus colegas, comprometendo seu desenvolvimento acadêmico e cognitivo. A pesquisa evidencia que crianças que não atingem o nível de leitura esperado até o terceiro ano têm quatro vezes mais chances de não concluírem o ensino médio, refletindo o modelo de "nutrição da linguagem" trazido à tona pela pesquisa. Isso nos leva a refletir sobre os riscos associados à falta de habilidades de leitura, que podem afetar não apenas o sucesso acadêmico, mas também a trajetória pessoal de cada indivíduo. É importante ressaltar que uma criança que fica para trás na leitura tem seis vezes mais chances de não concluir seus estudos. Em um país como o Brasil, onde 70% das crianças não alcançam o nível de leitura esperado até o terceiro ano, as implicações são profundas, não apenas para os indivíduos envolvidos, mas também para o desenvolvimento de toda a sociedade. Como afirmou Madalena Freire, "A leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas por incrível que pareça, a quase totalidade não sente esta sede." Esta citação ressalta a importância crucial da leitura e nos lembra da necessidade urgente de criar um ambiente propício para o desenvolvimento das habilidades de leitura desde os primeiros anos escolares. Portanto, a nutrição da linguagem e a conquista da leitura caminham de mãos dadas, fundamentais para o crescimento intelectual e emocional de cada indivíduo.
À luz dessas descobertas e reflexões, torna-se claro que o papel dos adultos na nutrição da linguagem infantil não é apenas uma responsabilidade educacional, mas também uma questão de justiça social. Como Paulo Freire sabiamente disse, 'Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.' A partir disso, podemos inferir que investir na educação desde os primeiros anos de vida, especialmente no desenvolvimento da linguagem, não só promove o crescimento individual, mas também pode criar uma sociedade mais igualitária e próspera. Portanto, é imperativo que todos os envolvidos no processo educacional - pais, educadores, políticos e a sociedade em geral - reconheçam a importância crucial da nutrição linguística e ajam de forma proativa para garantir que cada criança tenha acesso a um ambiente rico em interações verbais e oportunidades de aprendizado. Somente assim poderemos construir um futuro onde todas as crianças possam alcançar seu pleno potencial e contribuir para um mundo melhor.
Referências bibliográficas:
1. Hart, B., & Risley, T. R. (1995). Diferenças Significativas na Experiência Cotidiana de Crianças Americanas Jovens. Paul H Brookes Publishing.
2. Tronick, E. Z., Als, H., Adamson, L., Wise, S., & Brazelton, T. B. (1978). A resposta do bebê ao aprisionamento entre mensagens contraditórias na interação face a face. Journal of the American Academy of Child Psychiatry, 17(1), 1-13.
3. Freire, M. (2005). Educação como prática da liberdade. Paz e Terra.
4. Freire, P. (2018). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra.
5. Lerner, D. (2002). Ler e escrever na escola: O real, o possível e o necessário. Artmed Editora.
Professor Fagundes, um educador dedicado e apaixonado. Professor Titular de Física e Matemática na rede pública estadual, trazendo sua expertise para enriquecer o ensino dessas disciplinas fundamentais. Além disso, atua como Coordenador Pedagógico na rede pública municipal, contribuindo para o aprimoramento do sistema educacional em nível local. Não se limitando às salas de aula, ele é também um ativista incansável no campo da educação pública, envolvendo-se ativamente no meio sindical e político para promover melhorias significativas no cenário educacional.
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