Por: Aldo dos Santos*...
Tradicionalmente, todo primeiro de Maio comparecemos ao ato na Praça da Sé. Um espaço simbólico e referência de grandes manifestações e enfrentamentos do nosso povo, politicamente consciente da nossa tarefa histórica . Este é um lugar marcante, haja vista que num determinado dia, em 1985, quando estava acontecendo saques em supermercados por pessoas com fome, e, por tentar orientar as pessoas que estavam no centro, fui preso na saída da Catedral da Sé.
Naquela ocasião eu cursava Teologia na Faculdade Assunção, no Prédio da FAI, Ipiranga -Capital. Foi o primeiro curso nesta faculdade que ousadamente em plena ditadura militar trazia no seu currículo grande parte do conteúdo da Teologia da Libertação. Estávamos ainda em plena Ditadura Militar, porém, muito convencido e identificado, dentre outros pontos temáticos, com a luta em defesa dos pobres e oprimidos pelo sistema capitalista.
Saí da faculdade e sabendo que estava começando uma movimentação no centro da cidade por parte das pessoas com fome, imediatamente fui para lá na tentativa de ajudar a galera.
Ao dirigir-me para a Praça da Sé e lá chegando, observei várias pessoas esquálidas, famintas que entravam e saiam da Igreja.
Adentrei a Catedral e percebi que havia algum tipo de comunicação entre as pessoas naquele recinto fechado, uma vez que na Praça tinha muita gente estranha, possivelmente seriam policiais disfarçados.
Aproximei-me de alguns moradores com crianças desnutridas e cheguei a sugerir, com todo cuidado, que eles deveriam ir para os bairros menos visados, pois ali tinha muito policial à paisana e que poderiam ser presos.
Após algumas conversas na miúda, dialogando ajoelhado ao lado das pessoas pobres fiz várias abordagens sobre o sofrimento, tentando politizar este sofrimento. Considerando que ainda tinha que ir ao trabalho no Hospital Mandaqui no período da tarde, me preparei para pegar o ônibus rumo à Zona Norte na Capital.
Na saída da igreja pela porta central, fui agarrado por dois policiais civis, um de um lado e o outro do outro lado, me agarraram bruscamente e agressivamente, com xingamentos de toda natureza (comunista, bandido, terrorista que esta liderando os pobres e todos os adjetivos que você possa imaginar).
Levaram-me “delicadamente” para o centro da Praça da Sè onde já estava detido um grupo de famélicos sentados no chão e dominados. Empurraram-me bruscamente para junto deles, ao mesmo tempo em que aumentava o número de pessoas no entorno, formando uma espécie de círculo com xingamentos e ameaças contra nossas vidas.
Fiquei desolado, pois pobres, e todo tipo de transeuntes que nos ameaçavam exigindo nossa prisão e até a morte, ao ponto dos policiais rapidamente nos colocarem no chiqueirinho das inúmeras viaturas para não sermos linchados.
Andaram várias horas comigo e outros detidos dentro da viatura e finalmente nos levaram ao distrito policial que tinha no Parque Dom Pedro II.
Lá também foi outro martírio e horas depois, com fome, dolorido e sem dinheiro, perdi o dia de serviço, cheguei em casa todo desconfiado sem ter muito o que falar sobre o que tinha acontecido. A mulher indagava os filhos pequenos pouco ou nada entendiam, mas a vontade de mudar o mundo era maior do que qualquer sofrimento ou constrangimento.
Portanto, a Praça da Sé é um marco e pelo menos uma vez ao ano, deliberadamente, vou reviver em pensamento aqueles momentos que pouco diferem dos momentos atuais. Na Praça encontro vários e experientes combatentes da luta de classes e ao mesmo tempo celebro a memória e a história internacional da luta dos operários pelo mundo afora.
No dia em que fui preso e durante o pouco tempo que ficamos expostos na praça e dentro do chiqueirinho da viatura, não saía da minha cabeça o chamado filosófico/teológico da luta revolucionária da nossa classe, bem como a letra de duas músicas marcantes que fala do nosso sofrimento como migrante e da nossa luta por liberdade, igualdade e da partilha feliz.
A Triste Partida
- Composição - Patativa do Assaré
“Setembro passou
Outubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus, que é de nós
(Meu Deus, meu Deus)
Assim fala o pobre
Do seco nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
(Ai, ai, ai, ai)
A treze do mês
Ele fez experiência
Perdeu sua crença
Nas pedra de sal
(Meu Deus, meu Deus)
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
(Ai, ai, ai, ai)
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O Sol bem vermeio
Nasceu muito além
(Meu Deus, meu Deus)
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois barra não tem
(Ai, ai, ai, ai)
Sem chuva na terra
Descamba janeiro
Depois fevereiro
E o mesmo verão
(Meu Deus, meu Deus)
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz "isso é castigo"
Não chove mais não
(Ai, ai, ai, ai)
Apela pra março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Senhor São José
(Meu Deus, meu Deus)
Mas nada de chuva
'Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
(Ai, ai, ai, ai)
Agora pensando
Ele segue outra trilha
Chamando a família
Começa a dizer
(Meu Deus, meu Deus)
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nós vamo' a São Paulo
Viver ou morrer
(Ai, ai, ai, ai)
Nós vamo' a São Paulo
Que a coisa 'tá feia
Por terras alheias
Nós vamo' vagar
(Meu Deus, meu Deus)
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Daí pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
(Ai, ai, ai, ai)
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
(Meu Deus, meu Deus)
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
(Ai, ai, ai, ai)
Em um caminhão
Ele joga a famía
Chegou o triste dia
Já vai viajar
(Meu Deus, meu Deus)
A seca terrive
Que tudo devora
Ai, lhe bota pra fora
Da terra Natal
(Ai, ai, ai, ai)
O carro já corre
No topo da serra
Olhando pra terra
Seu berço, seu lar
(Meu Deus, meu Deus)
Aquele nortista
Partido de pena
De longe da cena
Adeus meu lugar
(Ai, ai, ai, ai)
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
(Meu Deus, meu Deus)
Tão triste coitado
Falando saudoso
Um seu filho choroso
Exclama a dizer
(Ai, ai, ai, ai)
De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
(Meu Deus, meu Deus)
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
(Ai, ai, ai, ai)
E a linda pequena
Tremendo de medo
Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?
(Meu Deus, meu Deus)
Meu pé de roseira
Coitado ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
(Ai, ai, ai, ai)
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo e azul
(Meu Deus, meu Deus)
O pai pesaroso
Nos fio pensando
E o carro rodando
Na estrada do sul
(Ai, ai, ai, ai)
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Percura um patrão
(Meu Deus, meu Deus)
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
(Ai, ai, ai, ai)
Trabaia dois ano
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vorta
(Meu Deus, meu Deus)
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
(Ai, ai, ai, ai)
Se arguma notícia
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
(Meu Deus, meu Deus)
Lhe bate no peito
Saudade de móio
E as água nos zóio
Começa a cair
(Ai, ai, ai, ai)
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
(Meu Deus, meu Deus)
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famía
Não volta mais não
(Ai, ai, ai, ai)
Distante da terra
Tão seca, mas boa
Exposto à garoa
A lama e o baú
(Meu Deus, meu Deus)
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No norte e no sul
(Ai, ai, ai, ai)”
A Internacional
“De pé, ó vítimas da fome
De pé, famélicos da terra
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra
Cortai o mal bem pelo fundo
De pé, não mais senhores
Se nada somos em tal mundo
Sejamos tudo, ó produtores
Bem unido façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional
Senhores, patrões, chefes supremos
Nada esperamos de nenhum
Sejamos nós que conquistemos
A terra-mãe livre e comum
Para não ter protestos vãos
Para sair desse antro estreito
Façamos nós por nossas mãos
Tudo o que a nós nos diz respeito
Bem unido façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional
Crime de rico a lei o cobre
O Estado esmaga o oprimido
Não há direitos para o pobre
Ao rico tudo é permitido
À opressão não mais sujeitos
Somos iguais todos os seres
Não mais deveres sem direitos
Não mais direitos sem deveres
Bem unido façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional
Abomináveis na grandeza
Os reis da mina e da fornalha
Edificaram a riqueza
Sobre o suor de quem trabalha
Todo o produto de quem sua
A corja rica o recolheu
Querendo que ela o restitua
O povo quer só o que é seu
Bem unido façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional
Fomos de fumo embriagados
Paz entre nós, guerra aos senhores
Façamos greve de soldados
Somos irmãos, trabalhadores
Se a raça vil, cheia de galas
Nos quer à força canibais
Logo verá que as nossas balas
São para os nossos generais
Bem unido façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional
Pois somos do povo ativos
Trabalhador forte e fecundo
Pertence a Terra aos produtivos
Ó parasitas, deixai o mundo
Ó parasita que te nutres
Do nosso sangue a gotejar
Se nos faltarem os abutres
Não deixa o Sol de fulgurar
Bem unido façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional”
Lutas, sonhos e rebeldias libertárias que seguem!
Aldo dos Santos – Militante sindical e filiado ao Psol.
A história do povo brasileiro é a história das lutas que travamos cotidianamente. As lutas dos que não se calam, dos que resistem, dos que não se deixam abater, ainda que sofram na pele com a repressão do Estado. A verdadeira escrita da história não está em livros escritos por acadêmicos, e sim nos movimentos sociais, no enfrentamento nas ruas, lado a lado com os mais desfavorecidos. Emocionante, inspiradora e fortalecedora a sua história, Prof Aldo.