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Os Filhos de Dona Francisca: uma genealogia da resistência preta no Brasil


Por Léo Duarte***


O silêncio como projeto de poder.


Quando Aparecido Alexandre da Silva publica Memórias de um boia-fria a professor, ele não apenas registra sua história de vida — ele resgata séculos de memórias silenciadas, transformando a escrita em um gesto radical de reparação histórica. Mais que uma autobiografia, o livro se revela um documento político e pedagógico que rompe com o pacto colonial de invisibilização da experiência preta, camponesa e periférica no Brasil.

Nas entrelinhas da infância migrante, analfabeta e empobrecida, emerge a voz de um coletivo que sobreviveu às estruturas do racismo, da exclusão educacional e da fome. Ao compartilhar sua trajetória, Cido desmascara o mito da meritocracia e ilumina os mecanismos de silenciamento que sustentam as desigualdades sociais no país. Como na alegoria da caverna, evocada por ele próprio, a obra convida o/a leitor/a a reconhecer as sombras que distorcem a realidade — e aponta a educação como possível fresta de luz.

Mas não se trata de qualquer educação: é aquela que reconhece, escuta e emancipa. A caminhada de Cido é feita de chão batido, lavoura árida e resistência cotidiana — e, por isso mesmo, profundamente política. Seu relato vai além da sequência cronológica dos fatos: constrói uma genealogia da resistência preta. O racismo estrutural atravessa as páginas como um rio subterrâneo — ora explícito, ora transbordando em castigos, silêncios, humilhações e pequenas insurgências.

Da exclusão escolar às migrações forçadas, das práticas religiosas ambíguas aos traumas da ditadura, Memórias de um boia-fria a professor mapeia com precisão e sensibilidade o modo como o Brasil se organizou para domesticar e apagar narrativas subalternizadas.

É a partir dessa obra que este artigo propõe uma análise crítica, ancorada em dados atuais e teorias sociais, sobre os mecanismos de silenciamento racial, desigualdade educacional e apagamento histórico que continuam a moldar o país. Reencontrar Cido, neste texto, é também reencontrar um mestre. Fui seu aluno na EJA da Escola Estadual Professora Yolanda Noronha do Nascimento, em São Bernardo do Campo — e é com essa escuta de aprendiz, somada à vivência como educador social e ativista em direitos humanos, que retomo a força ancestral que este livro carrega e transmite.

Linhagens pretas e os donos da memória

A narrativa de Cido começa por onde muitos livros de história silenciam: o avô Alexandre de Melo, afrodescendente nascido sob a vigência da Lei do Ventre Livre (1871), cuja vida, mesmo após a abolição formal da escravidão, permaneceu atrelada à fazenda dos antigos senhores. O sobrenome herdado, “de Melo”, jamais foi registrado oficialmente — um gesto calculado de apagamento jurídico e simbólico, destinado a impedir qualquer reivindicação de direitos hereditários.

O que se transmite ao neto não é apenas a memória afetiva de um avô: é a revelação de como o Brasil pós-abolição manteve pretos/as sob controle por meio de vínculos informais e relações de dependência. Essa realidade é o que Abdias do Nascimento definiu como “extermínio simbólico da população preta” — um projeto que domesticava corpos pretos por meio da proximidade aparente, mas negava, sistematicamente, cidadania plena.

Na sequência dessa linhagem, a figura de Dona Francisca emerge como expressão encarnada da resistência. Mãe do autor, ela percorre a pé mais de 60 quilômetros do sul de Minas ao interior de São Paulo, em busca de sobrevivência para si e seus filhos/as. Sua migração forçada, típica do século XX, expõe o abandono histórica do Estado para com as populações pretas e rurais. Mulher preta, analfabeta e mãe solo, Dona Francisca representa uma intersecção de opressões — mas também a potência de uma pedagogia ancestral, feita de afeto, sacrifício e insistência.

Mesmo sem saber ler ou escrever, ela compreende a educação como herança legítima — e luta para que seus filhos/as acessem aquilo que lhe foi negado. Sua trajetória antecipa o que Paulo Freire chamaria de pedagogia da esperança: um saber nascido da experiência, do chão e da resistência silenciosa das mulheres pretas.

A realidade que atravessa essa genealogia ressoa nas estatísticas contemporâneas. Segundo o IBGE (2022), mais de 56% da população brasileira se autodeclara preta ou parda. No entanto, esse grupo concentra os piores indicadores sociais: são maioria entre os analfabetos, os desempregados e os moradores de áreas sem saneamento básico. A herança da escravidão não é apenas histórica ou simbólica — ela estrutura o presente.

Cada dado tem rosto, corpo e nome. E muitos desses nomes, como os da linhagem de Cido, foram silenciados antes mesmo de serem registrados. Em muitos casos, silenciados também pela violência: segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2023), mais de 77% das pessoas assassinadas no Brasil são pretas, o que revela uma política estrutural de necropolítica racial em curso. Escrever sobre eles é inscrever, também, um novo capítulo da história brasileira — um capítulo narrado a partir de dentro.

A escola que nunca chegou

A promessa de que a educação é o caminho para a ascensão social nunca se cumpriu para a maioria da população preta e rural brasileira. Em Memórias de um boia-fria a professor, Aparecido Alexandre da Silva revela como esse direito foi historicamente negado à sua família — não por acaso, mas por estrutura.

O pai de Cido decide que só matricularia os filhos/as quando houvesse pelo menos três em idade escolar, como se estudar fosse um evento coletivo e excepcional, e não um direito individual. A irmã do meio, Aparecida, permanece analfabeta por não ter com quem ir à escola. Os irmãos mais velhos, como Maria de Lurdes, abandonam os estudos ainda na infância para trabalhar na roça desde os sete anos, e no caso dela ajudar também nas tarefas da casa. A lógica produtivista da família camponesa, aliada à ausência de políticas públicas, tornava o acesso à educação um privilégio esporádico — não um direito garantido.

Esse padrão de exclusão permanece até hoje. Segundo a PNAD Contínua (IBGE, 2023), mais de 70% dos/as jovens de 14 a 29 anos que abandonam a escola no Brasil são pretos/as ou pardos/as. A razão principal segue sendo a mesma de décadas atrás: a necessidade de trabalhar. Para milhares de famílias como a de Cido, a escola ainda é luxo, e não base da cidadania.

Mesmo quando presente, a escola não se mostrava acolhedora. O ambiente era permeado por racismo cotidiano, desigualdades explícitas e violências sutis. Cido narra que ele e os irmãos/as levavam comida em caldeirões e revezavam uma única colher, enquanto os/as colegas brancos/as tinham lancheira, lanche fresco e colher individual. Aprender, para eles/as, era também engolir a vergonha.

O que se desenha é um cenário de exclusão pedagógica mascarada por discursos meritocráticos. A escola, ausente no campo e seletiva na cidade, funcionava como uma engrenagem de manutenção das desigualdades. Um lugar onde os corpos pretos eram vistos como intrusos e onde a inteligência era medida por critérios raciais e de classe.

O sonho de Dona Francisca — ver os filhos/as estudando, mesmo sem saber ler uma única palavra — atravessa o livro como um lamento e uma profecia. Sua luta antecipou em décadas uma bandeira que ainda hoje precisa ser empunhada: a educação é um direito inegociável, e não uma concessão que depende da companhia, da renda ou da geografia.

Racismo estrutural: do campo à cidade

Cido aprendeu o que era racismo antes mesmo de saber nomeá-lo. Ainda criança, sofreu com apelidos pejorativos que ridicularizavam seu corpo e sua cor, foi impedido de brincar, humilhado em público — tudo sem entender que o problema não estava nele, mas em uma sociedade moldada para negar humanidade à infância preta. Esses episódios, muitas vezes tratados como “brincadeiras” ou “coisas da idade”, são, na verdade, lições precoces de exclusão. Uma pedagogia do abandono que começa no recreio e se prolonga pela vida adulta.

O racismo estrutural não tem fronteiras geográficas. Ele atua com a mesma brutalidade no campo e na cidade, nas escolas e nas instituições. As memórias de Cido deixam claro que a migração familiar não representou um rompimento com o passado, mas uma continuidade das violências em outro cenário. A cidade, longe de ser o espaço da civilidade e do progresso, reproduziu — com nova linguagem e novos códigos — os mesmos mecanismos de exclusão vividos na zona rural.

Ao recordar a punição injusta sofrida por seu irmão por brincar com uma bola, Cido nos mostra como os corpos pretos são alvos precoces da repressão. O que se apresenta como “disciplina” na infância, muitas vezes, se transforma em criminalização na juventude — até alcançar, tragicamente, o extermínio. Segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2023), 77,4% das vítimas de mortes violentas no Brasil são pretas. A cor da pele, no Brasil, define o acesso não só à escola, ao trabalho e à renda — mas também à vida.

Esse dado se conecta diretamente ao conceito de necropolítica, formulado por Achille Mbembe, segundo o qual determinados grupos são tratados pelo Estado como descartáveis. A infância preta, ao invés de protegida, é exposta ao abandono, à violência simbólica e à indiferença institucional. O corpo preto não é apenas excluído — é combatido.

Mesmo na cidade, o racismo segue operando: disfarçado de piada, de olhar desconfiado, de oportunidade negada. A travessia de Cido entre territórios evidencia que o problema não era o lugar — era o sistema. E esse sistema se atualiza, perpetuando desigualdades sob a aparência de neutralidade.

As memórias de um boia-fria a professor escancaram, com precisão e sensibilidade, o fracasso do Estado em proteger suas crianças pretas. A dor de Cido não é exceção: é regra. E continua sendo. Enquanto os discursos celebram uma igualdade formal, as estatísticas desmentem a realidade vivida — e o silêncio institucional segue tão gritante quanto a violência que ele encobre.

Ditadura, anticomunismo e silenciamentos

A infância de Cido transcorre sob a sombra de um país mergulhado na ditadura civil-militar. Mas o regime autoritário de 1964 não se manifestava apenas nas manchetes ou nas prisões políticas — ele também se infiltrava nas casas humildes, nos sermões religiosos e nas ondas do rádio. O medo era método. A pedagogia era o castigo. O silêncio, uma exigência.

Nas páginas de Memórias de um boia-fria a professor, esse ambiente opressivo se revela com nitidez. O medo da polícia, o pavor do “comunismo”, as ameaças sobre o “inferno” eterno: tudo era usado como instrumento de controle. A violência simbólica se confundia com a disciplina familiar. Tapas e punições vinham “em nome de Deus”, e os radinhos de pilha repetiam, entre hinos e sermões, a lógica do inimigo interno — seja ele político ou espiritual.

O conservadorismo religioso, profundamente enraizado nas periferias rurais, operava como braço auxiliar da repressão. Reforçava o patriarcado, naturalizava a submissão e interditava o pensamento crítico. Mas, paradoxalmente, era também nesse espaço que muitas mulheres pretas encontravam brechas para resistência. Dona Francisca e Maria de Lurdes, por exemplo, lideravam terços cantados e articulavam redes de solidariedade entre vizinhas — práticas que mantinham viva uma ancestralidade coletiva e uma força feminina subterrânea.

Essa ambivalência é um dos grandes méritos da obra: mostrar que fé e opressão não são opostos, mas forças que podem se cruzar, disputar e até coexistir em um mesmo território. A religiosidade popular, muitas vezes capturada pelo moralismo dominante, também servia como escudo, refúgio e plataforma de resistência silenciosa.

Nesse contexto, a educação aparece como ameaça. A pedagogia libertadora proposta por Paulo Freire, que estimulava a leitura crítica do mundo, era vista como subversiva. O que se oferecia às crianças como Cido era o dogma — religioso, político e moral — para que jamais ousassem sonhar com mudanças. A repressão não era apenas uma política de Estado: era um projeto de nação, moldado para calar os corpos que pensam, questionam e oram fora da ordem.

Ao reconstituir esse tempo, Cido não apenas narra sua infância: ele denuncia um Brasil que ensinava a obedecer antes de ensinar a pensar. Suas memórias expõem como o autoritarismo não começa no DOI-CODI — ele nasce nos lares, nos altares e nas salas de aula onde o medo se impunha como disciplina.

O magistério como resistência política

A travessia que transforma Cido de lavrador em professor não acontece por acaso, nem por obra do acaso. Ela nasce da persistência, da dor e da aposta no impossível. Ao conquistar o direito à alfabetização já na vida adulta, Cido não apenas rompe o ciclo de exclusão que marcava sua família — ele devolve ao saber a sua dimensão mais potente: a de ferramenta política de transformação.

Seu ingresso no magistério é mais do que uma conquista individual. No contexto de Memórias de um boia-fria a professor, tornar-se professor é romper um cerco histórico que tentou silenciar sua voz por gerações. É assumir um lugar que, por estrutura, lhe foi negado — e convertê-lo em plataforma de reexistência coletiva.

No ABC Paulista, Cido passa a atuar na formação de professores/as, articulando sua vivência camponesa, a memória dos silêncios e a pedagogia libertadora. O diálogo com Paulo Freire não é apenas teórico: é visceral. Ele compreende que ensinar é muito mais do que transmitir conteúdos — é escutar, construir vínculos, devolver dignidade. Ensinar, para Cido, é resgatar vidas soterradas pela exclusão.

Essa pedagogia da resistência se opõe frontalmente à lógica tecnicista e meritocrática que ainda domina grande parte das políticas educacionais. Enquanto muitos discursos sobre educação se limitam a índices e resultados, Cido aposta no poder das histórias, das experiências e dos corpos presentes na sala de aula. Ele forma professores/as, mas também sujeitos críticos/as — capazes de questionar, transformar e reinventar o mundo à sua volta.

Num país onde o racismo estrutura também o ambiente escolar, a presença de um professor preto que narra sua própria trajetória rompe com o script tradicional da educação. Cido ensina com suas cicatrizes, com seus passos, com o olhar de quem atravessou a roça e chegou ao quadro preto. Sua autoridade não nasce de títulos, mas de vivência. E é por isso que ela educa.

O magistério, em suas mãos, deixa de ser ocupação — e se transforma em missão política. É por meio dele que ele planta a palavra onde antes havia silêncio, constrói caminhos onde antes havia muro. A sala de aula, para Cido, é território de insurgência amorosa — onde se cultiva o que a sociedade insiste em negar: a humanidade plena da população preta, pobre e periférica.

Os dados confirmam a denúncia: desigualdade tem cor, território e herança

As estatísticas mais recentes confirmam, com precisão fria, aquilo que Cido narra com emoção e memória: a desigualdade no Brasil não é acidental — ela tem cor, território e genealogia. A história de um boia-fria a professor ganha ainda mais força quando lida à luz dos números que atravessam a população preta brasileira até os dias de hoje.

Segundo o IBGE (2023), cerca de 9,3 milhões de brasileiros/as permanecem analfabetos/as — e a maioria absoluta pertence à população preta com mais de 40 anos. O dado revela que o ciclo de exclusão que marcou a infância de Cido não se encerrou com sua geração. Ao contrário: ele se reproduz, atualiza e consolida a marginalização educacional como destino social.

O recorte etário e racial aprofunda essa leitura. Entre pessoas brancas com mais de 60 anos, a taxa de analfabetismo é de 11,1%. Já entre pessoas pretas na mesma faixa etária, o índice ultrapassa 25%. A juventude também não escapa da lógica de negação de direitos: 71,6% dos/as jovens de 14 a 29 anos que não completaram o ensino médio são pretos/as ou pardos/as (PNAD Contínua, 2023). O trabalho precoce, a evasão forçada e o racismo institucional continuam a impedir o pleno acesso à educação.

O território, assim como a cor da pele, segue como marcador de desigualdades. A migração forçada vivida por Dona Francisca nos anos 1960, a pé do sul de Minas ao interior de São Paulo, ilustra a omissão histórica do Estado em garantir dignidade às populações rurais e pretas. Essa realidade, longe de pertencer ao passado, permanece viva.

Segundo a PNAD (2022), quase 70% dos domicílios rurais no Brasil não possuem acesso adequado a saneamento básico. O dado revela que, ainda hoje, morar no campo — especialmente sendo preto/a — significa viver sem os direitos mais elementares assegurados. A exclusão territorial que empurrou Dona Francisca para a estrada continua sendo um destino imposto a milhares de famílias, como herança direta do abandono institucional.

Mas não é apenas a ausência do Estado que marca esses territórios — é também sua presença violenta. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Brasil registrou, em 2022, 47 assassinatos em conflitos no campo, sendo a maioria das vítimas trabalhadores/as rurais, indígenas e quilombolas. Os dados evidenciam que a terra, quando habitada por corpos racializados e empobrecidos, continua sendo tratada como território de disputa, extermínio e silenciamento forçado.

No campo da memória, a exclusão também se faz presente. Pesquisa do Instituto Locomotiva (2022) mostra que 75% das pessoas pretas nunca estudaram figuras pretas relevantes na escola. O que Cido denuncia com a caneta, as estatísticas confirmam com números: o silêncio é política pública. O apagamento é metodologia de ensino.

Esses dados não são abstrações — são rostos, famílias, trajetórias interrompidas. São a materialização contemporânea de uma herança que se perpetua. Ao iluminar essas ausências, Memórias de um boia-fria a professor transforma-se também em denúncia ampliada: o que parecia passado é, na verdade, a face persistente de um presente ainda colonizado.

Os dados apresentados neste artigo foram selecionados a partir de fontes públicas de alta confiabilidade, como IBGE, IPEA, PNAD Contínua, CPT, Locomotiva e UFMG. O critério de escolha priorizou recortes recentes por raça, território e faixa etária, com o objetivo de refletir com rigor as desigualdades narradas por Cido — e evidenciar que sua história, longe de ser um caso isolado, traduz estatisticamente o destino social imposto a milhões. Neste cruzamento entre número e memória, o que se revela não é apenas a ausência de políticas públicas — mas a presença ativa de um sistema de exclusão.

Do diagnóstico à reparação: políticas públicas para romper o ciclo

A contundência de Memórias de um boia-fria a professor e os dados que a atravessam não deixam margem para dúvidas: é urgente transformar denúncia em reparação. O que se apresenta ao longo da obra é um diagnóstico histórico, social e racial que exige respostas à altura de sua complexidade. E essas respostas devem vir do Estado — não como concessão, mas como responsabilidade histórica.

Um primeiro passo é fortalecer e efetivar a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ), lançada em 2023. Mais do que incluir menções genéricas à diversidade, é preciso garantir financiamento adequado, formação continuada para professores/as, monitoramento efetivo e participação das comunidades pretas e quilombolas na construção curricular. Sem orçamento, a equidade é apenas retórica.

Outro eixo fundamental é a valorização e expansão da Educação de Jovens e Adultos (EJA) — porta de entrada tardia, mas vital, para milhares de brasileiros/as como Cido. O Censo Escolar (2022) aponta queda contínua nas matrículas da EJA, revelando o abandono progressivo de uma modalidade que, na prática, representa a única chance de escolarização para milhões. Tratar a EJA como prioridade é reconhecer trajetórias interrompidas pela exclusão estrutural — e reabrir caminhos onde antes havia portas trancadas.

Também é necessário ampliar e proteger os programas de ações afirmativas no ensino superior e no serviço público. Apesar dos ataques recentes, os dados comprovam sua eficácia: estudo da UFMG (2022) mostra que estudantes cotistas têm desempenho acadêmico semelhante ou superior ao dos não cotistas, além de contribuírem para a democratização do currículo e das práticas pedagógicas. Defender as cotas é defender um Brasil mais justo, plural e inteligente.

No campo da memória, o desafio é romper o pacto de esquecimento que ainda silencia as contribuições pretas e populares à história do país. Investir em centros de memória, museus comunitários, acervos digitais e arquivos vivos é uma forma concreta de garantir que histórias como a de Cido não permaneçam exceções isoladas. A memória não é só lembrança — é reparação, pertencimento e política pública.

As propostas contidas nesta agenda não partem do zero — elas se ancoram em lutas históricas, em experiências locais e em vozes que há muito denunciam a exclusão. Memórias de um boia-fria a professor nos convoca a escutar essas vozes — e, mais do que isso, a transformá-las em diretriz.

Embora centrada na história de Cido, a exclusão retratada em suas memórias se repete em muitas outras partes do país. Realidades semelhantes atravessam as trajetórias de jovens da periferia urbana, de educadores/as quilombolas no Maranhão, de trabalhadores/as ribeirinhos/as no Pará e de estudantes indígenas no interior do Amazonas. A marginalização da população preta, pobre e do campo não é exceção: é arquitetura de um projeto de país. Por isso, a história contada por Cido precisa ser compreendida como espelho — e também como alerta.

Se o leão escrever, muda a história

Memórias de um boia-fria a professor honra a sabedoria do provérbio africano que inspira sua epígrafe: “Até que o leão aprenda a escrever, a história glorificará o caçador.” Ao escrever, Cido rompe o ciclo do silêncio e devolve a palavra a quem, por séculos, teve sua história contada por outros/as — ou simplesmente apagada. Sua voz, gestada na roça, burilada na sala de aula e alimentada pela esperança, ecoa como testemunho, denúncia e convocação.

Mas o livro vai além da denúncia. Ele propõe uma outra possibilidade de país — um Brasil em que o menino preto, lavrador, periférico, não precise romper muralhas para viver o que é direito: a educação, a dignidade, o reconhecimento da própria humanidade. A obra é um grito contra o projeto de marginalização — e, ao mesmo tempo, um chamado à reconstrução coletiva.

Talvez por isso, mais do que leitor, eu tenha me sentido parte deste livro desde as primeiras páginas. Como preto, nordestino, migrante e ex-menino de rua, carrego nas veias marcas que também atravessam a vida de Cido: a luta por educação em territórios onde ela sempre chega por último, o olhar desconfiado que recai sobre a juventude preta periférica, e a certeza de que a palavra pode ser arma — mas também ponte.

Como educador social, ex-conselheiro tutelar, fotógrafo, designer gráfico e estudante de Psicologia, aprendi que resistir é, muitas vezes, inventar caminhos onde só havia recusa. Foi essa lição que encontrei nas noites de aula da EJA, na Escola Estadual Professora Yolanda Noronha do Nascimento, em São Bernardo do Campo — e que reencontro agora, nas páginas deste livro que é memória viva e projeto de futuro.

Tive a honra de ser aluno do professor Cido — e, anos depois, reencontrá-lo não apenas como ex-aluno, mas como alguém convidado a contribuir com o projeto gráfico desta obra. Fui citado por ele nos agradecimentos — e isso, para mim, vale mais do que qualquer diploma: é um reconhecimento selado pela confiança e pela luta compartilhada.

Sou Léo Duarte — educador social, ex-conselheiro tutelar, fotógrafo, designer gráfico, estudante de Psicologia e ativista em defesa dos direitos humanos — e tive a honra de caminhar ao lado de Cido. Este artigo é, antes de tudo, um reencontro: entre aluno e mestre, entre silêncio e palavra, entre passado e justiça.

Porque há histórias que não apenas nos emocionam — nos educam para sempre. Esta é uma delas.


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