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O LIVRO “RACISMO ESTRUTURAL” DO FILÓSOFO SILVIO ALMEIDA É MUITO SIGNIFICATIVO.

Atualizado: 1 de dez. de 2023



Aldo dos Santos***




"À leitora e ao leitor que me dão a alegria de ler este livro, faço dois alertas. O primeiro é que não se trata de um livro especificamente sobre raça ou racismo. Trata-se, sobretudo, de um livro de teoria social. Neste sentido, há duas teses a destacar: uma é a de que a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e de racismo. Procuro então demonstrar como a filosofia, a ciência política, a teoria do direito e a teoria econômica mantêm, ainda que de modo velado, um diálogo com o conceito de raça.

A outra tese é a de que o significado de raça e de racismo, bem como suas terríveis consequências, exigem dos pesquisadores e pesquisadoras um sólido conhecimento de teoria social.

A tese central é a de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade.

Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade.

Em suma, procuramos demonstrar neste livro que as expressões do racismo no cotidiano, seja nas relações interpessoais, seja na dinâmica das instituições, são manifestações de algo mais profundo, que se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade.


RAÇA E RACISMO.


O iluminismo tornou-se o fundamento filosófico das grandes revoluções liberais que, a pretexto de instituir a liberdade e livrar o mundo das trevas e preconceitos da religião, iria travar guerras contra as instituições absolutistas e o poder tradicional da nobreza. As revoluções inglesas, a americana e a francesa foram o ápice de um processo de reorganização do mundo, de uma longa e brutal transição das sociedades feudais para a sociedade capitalista em que a composição filosófica do homem universal, dos direitos universais e da razão universal mostrou-se fundamental para a vitória da civilização. Esta mesma civilização que, no século seguinte, seria levada para outros lugares do mundo, para os primitivos, para aqueles que ainda não conheciam os benefícios da liberdade, da igualdade, do Estado de direito e do mercado. E foi esse movimento de levar a civilização para onde ela não existia que redundou em um processo de destruição e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão e a que se denominou colonialismo.

Achille Mbembe afirma que o colonialismo foi um projeto de universalização, cuja finalidade era “inscrever os colonizados no espaço da modernidade”.

Porém, a “vulgaridade, a brutalidade tão habitualmente desenvolta e sua má-fé fizeram do colonialismo um exemplo perfeito de antiliberalismo”. No século XVIII, mais precisamente a partir do ano de 1791, o projeto de civilização iluminista baseada na liberdade e igualdade universais encontraria sua grande encruzilhada: a Revolução Haitiana.

O povo negro haitiano, escravizado por colonizadores franceses, fez uma revolução para que as promessas de liberdade e igualdade universais fundadas pela Revolução Francesa fossem estendidas a eles, assim como foram contra um poder que consideraram tirano, pois negava-lhes a liberdade e não lhes reconhecia a igualdade. O resultado foi que os haitianos tomaram o controle do país e proclamaram a independência em 1804.

Com a Revolução Haitiana, tornou-se evidente que o projeto liberaliluminista não tornava todos os homens iguais e sequer faria com que todos os indivíduos fossem reconhecidos como seres humanos.

Isso explicaria por que a civilização não pode ser por todos partilhada. Os mesmos que aplaudiram a Revolução Francesa viram a Revolução Haitiana com desconfiança e medo, e impuseram toda a sorte de obstáculos à ilha caribenha, que até os dias de hoje paga o preço pela liberdade que ousou reivindicar.

Ora, é nesse contexto que a raça emerge como um conceito central para que a aparente contradição entre a universalidade da razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo e da escravidão possam operar simultaneamente como fundamentos irremovíveis da sociedade contemporânea. Assim, a classificação de seres humanos serviria, mais do que para o conhecimento filosófico, como uma das tecnologias do colonialismo europeu para a submissão e destruição de populações das Américas, da África, da Ásia e da Oceania.

Sobre os indígenas americanos, a obra do etnólogo holandês, Cornelius de Pauw, é emblemática. Para o escritor holandês do século XVIII, os indígenas americanos “não têm história”, são “infelizes”, “degenerados”, “animais irracionais” cujo temperamento é “tão úmido quanto o ar e a terra onde vegetam”. Já no século XIX, um juízo parecido com o de Pauw seria feito pelo filósofo Hegel acerca dos africanos, que seriam “sem história, bestiais e envoltos em ferocidade e superstição”.

As referências a “bestialidade” e “ferocidade” demonstram como a associação entre seres humanos de determinadas culturas, incluindo suas características físicas, e animais ou mesmo insetos é uma tônica muito comum do racismo e, portanto, do processo de desumanização que antecede práticas discriminatórias ou genocídios até os dias de hoje.


O espírito positivista surgido no século XIX transformou as indagações sobre as diferenças humanas em indagações científicas, de tal sorte que de objeto filosófico, o homem passou a ser objeto científico. A biologia e a física serviram como modelos explicativos da diversidade humana: nasce a ideia de que características biológicas – determinismo biológico – ou condições climáticas e/ou ambientais – determinismo geográfico – seriam capazes de explicar as diferenças morais, psicológicas e intelectuais entre as diferentes raças. Desse modo, a pele não branca e o clima tropical favoreceriam o surgimento de comportamentos imorais, lascivos e violentos, além de indicarem pouca inteligência. Por essa razão, Arthur de Gobineau recomendou evitar a “mistura de raças”, pois o mestiço tendia a ser o mais “degenerado”.

Esse tipo de pensamento, identificado como racismo científico, obteve enorme repercussão e prestígio nos meios acadêmicos e políticos do século XIX, como demonstram, além das de Arthur de Gobineau, as obras de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e, no Brasil, Silvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues.

É importante lembrar que nesse mesmo século a primeira grande crise do capitalismo, em 1873, levou as grandes potências mundiais da época ao imperialismo e, consequentemente, ao neocolonialismo, que resultou na invasão e divisão do território da África, nos termos da Conferência de Berlim de 1884. Ideologicamente, o neocolonialismo assentou-se no discurso da inferioridade racial dos povos colonizados que, segundo seus formuladores, estariam fadados à desorganização política e ao subdesenvolvimento. Ellen Meiksins Wood identifica a peculiaridade do “racismo moderno” justamente em sua ligação com o colonialismo.

Ellen Meiksins Wood identifica a peculiaridade do “racismo moderno” justamente em sua ligação com o colonialismo: racismo moderno é diferente, uma concepção mais viciosamente sistemática de inferioridade intrínseca e natural, que surgiu no final do século XVII ou início do século XVIII, e culminou no século XIX, quando adquiriu o reforço pseudocientífico de teorias biológicas de raça, e continuou a servir como apoio ideológico para opressão colonial mesmo depois da abolição da escravidão.

Desse modo, pode-se concluir que, por sua conformação histórica, a raça opera a partir de dois registros básicos que se entrecruzam e complementam: como característica biológica, em que a identidade racial será atribuída por algum traço físico, como a cor da pele, por exemplo; como característica étnico-cultural, em que a identidade será associada à origem geográfica, à religião, à língua ou outros costumes, “a uma certa forma de existir”.

À configuração de processos discriminatórios a partir do registro étnico-cultural Frantz Fanon denomina racismo cultural.

No século XX, parte da antropologia constituiu-se a partir do esforço de demonstrar a autonomia das culturas e a inexistência de determinações biológicas ou culturais capazes de hierarquizar a moral, a cultura, a religião e os sistemas políticos. A constatação é a de que não há nada na realidade natural que corresponda ao conceito de raça.

Os eventos da Segunda Guerra Mundial e o genocídio perpetrado pela Alemanha nazista reforçaram o fato de que a raça é um elemento essencialmente político, sem qualquer sentido fora do âmbito socioantropológico. Ainda que hoje seja quase um lugar-comum a afirmação de que a antropologia surgida no início do século XX e a biologia – especialmente a partir do sequenciamento do genoma – tenham há muito demonstrado que não existem diferenças biológicas ou culturais que justifiquem um tratamento discriminatório entre seres humanos, o fato é que a noção de raça ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários.

A fim de apresentar os contornos fundamentais do debate de modo didático, classificamos em três as concepções de racismo: individualista, institucional e estrutural. A classificação aqui apresentada parte dos seguintes critérios:

a) relação entre racismo e subjetividade;

b) relação entre racismo e Estado;

c) relação entre racismo e economia.

Queremos desde já fazer um esclarecimento essencial para o percurso que faremos a partir de agora e que configura um dos pontos mais significativos deste livro. Ao contrário de grande parte da literatura sobre o tema que utiliza os termos indistintamente, difereciamos o racismo institucional do racismo estrutural. Não são a mesma coisa e descrevem fenômenos distintos.


CONCEPÇÃO INDIVIDUALISTA


O racismo, segundo esta concepção, é concebido como uma espécie de “patologia” ou anormalidade.

Sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo.

Por tratar-se de algo ligado ao comportamento, a educação e a conscientização sobre os males do racismo, bem como o estímulo a mudanças culturais, serão as principais formas de enfrentamento do problema.

O racismo é uma imoralidade e também um crime, que exige que aqueles que o praticam sejam devidamente responsabilizados, disso estamos convictos. Porém, não podemos deixar de apontar o fato de que a concepção individualista, por ser frágil e limitada, tem sido a base de análises sobre o racismo absolutamente carentes de história e de reflexão sobre seus efeitos concretos. É uma concepção que insiste em flutuar sobre uma fraseologia moralista inconsequente – “racismo é errado”, “somos todos humanos”, “como se pode ser racista em pleno século XXI?”, “tenho amigos negros” etc. – e uma obsessão pela legalidade. No fim das contas, quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de bem”.


CONCEPÇÃO INSTITUCIONAL


Sob esta perspectiva, o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça. Assim, as instituições moldam o comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como dos sentimentos e preferências.

As sociedades não são homogêneas, visto que são marcadas por conflitos, antagonismos e contradições que não são eliminados, mas absorvidos e mantidos sob controle por meios institucionais, como é exemplo o funcionamento do “sistema de justiça”. Se é correta a afirmação de que as instituições são a materialização das determinações formais da vida social, pode-se tirar duas conclusões: a) instituições, enquanto o somatório de normas, padrões e técnicas de controle que condicionam o comportamento dos indivíduos, resultam dos conflitos e das lutas pelo monopólio do poder social;

b) as instituições, como parte da sociedade, também carregam em si os conflitos existentes na sociedade. Em outras palavras, as instituições também são atravessadas internamente por lutas entre indivíduos e grupos que querem assumir o controle da instituição.


Assim, o domínio de homens brancos em instituições públicas – o legislativo, o judiciário, o ministério público, reitorias de universidades etc. – e instituições privadas – por exemplo, diretoria de empresas – depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos.

Um exemplo dessa mudança institucional são as políticas de ação afirmativa, cujo objetivo é, grosso modo, aumentar a representatividade de minorias raciais e alterar a lógica discriminatória dos processos institucionais.

O que os autores destacam é o fato de que as instituições atuam na formulação de regras e imposição de padrões sociais que atribuem privilégios a um determinado grupo racial, no caso, os brancos. E um exemplo disso é a exigência de “boa aparência” para se candidatar a uma vaga de emprego, que simultaneamente é associada a características estéticas próprias de pessoas brancas.

Por este motivo, Hamilton e Ture chamam atenção para o fato de que sempre que “a demanda negra por mudança se torna forte”, ou seja, sempre que as normas e padrões que constituem a supremacia branca for desafiada, a indiferença em relação às precárias condições de vida da população negra será substituída por uma oposição ativa “baseada no medo e no interesse próprio”.


CONCEPÇÃO ESTRUTURAL


Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente – com todos os conflitos que lhe são inerentes –, o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura.

As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista.

Não é algo criado pela instituição, mas é por ela reproduzido.

Nesse caso, as relações do cotidiano no interior das instituições vão reproduzir as práticas sociais corriqueiras, dentre as quais o racismo, na forma de violência explícita ou de microagressões – piadas, silenciamento, isolamento etc. Enfim, sem nada fazer, toda instituição irá se tornar uma correia de transmissão de privilégios e violências racistas e sexistas.

É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial investir na adoção de políticas internas que visem:

a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo – por exemplo, na publicidade;

b) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e de prestígio na instituição;

c) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais;

d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero.

Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural.

Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. Ou seja, pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para racistas. Pelo contrário: entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas. Consciente de que o racismo é parte da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo.

A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas.

Ou seja, raça não é uma fantasmagoria, um delírio ou uma criação da cabeça de pessoas mal intencionadas. É uma relação social, o que significa dizer que a raça se manifesta em atos concretos ocorridos no interior de uma estrutura social marcada por conflitos e antagonismos


O RACISMO É PROCESSO POLÍTICO.


Político porque, como processo sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade, depende de poder político; caso contrário seria inviável a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros. Por isso, é absolutamente sem sentido a ideia de racismo reverso. O racismo reverso seria uma espécie de “racismo ao contrário”, ou seja, um racismo das minorias dirigido às maiorias.


Homens brancos não perdem vagas de emprego pelo fato de serem brancos, pessoas brancas não são “suspeitas” de atos criminosos por sua condição racial, tampouco têm sua inteligência ou sua capacidade profissional questionada devido à cor da pele.

O termo “reverso” já indica que há uma inversão, algo fora do lugar, como se houvesse um jeito “certo” ou “normal” de expressão do racismo. Racismo é algo “normal” contra minorias – negros, latinos, judeus, árabes, persas, ciganos etc. – porém, fora destes grupos, é “atípico”, “reverso”.

A politicidade do racismo apresenta-se, basicamente, em duas dimensões: dimensão institucional: por meio da regulação jurídica e extrajurídica, tendo o Estado como o centro das relações políticas da sociedade contemporânea. dimensão ideológica: como manter a coesão social diante do racismo? A política não se resume ao uso da força, como já dissemos. É fundamental que as instituições sociais, especialmente o Estado, sejam capazes de produzir narrativas que acentuem a unidade social, apesar de fraturas como a divisão de classes, o racismo e o sexismo.


COMO NATURALIZAMOS O RACISMO?


Nos ambientes acadêmicos e próprios ao exercício da advocacia percebi que, na grande maioria das vezes, eu era uma das poucas pessoas negras, senão a única, na condição de advogado e de professor. Entretanto, essa percepção se altera completamente quando, nesses mesmos ambientes, olho para os trabalhadores da segurança e da limpeza: a maior parte negros e negras como eu, todos uniformizados, provavelmente mal remunerados, quase imperceptíveis aos que não foram “despertados” para as questões raciais como eu fui.

Essa segregação não oficial entre negros e brancos que vigora em certos espaços sociais desafia as mais diversas explicações. Eis algumas delas: pessoas negras são menos aptas para a vida acadêmica e para a advocacia; pessoas negras, como todas as outras pessoas, são afetadas por suas escolhas individuais, e sua condição racial nada tem a ver com a situação socioeconômica; pessoas negras, por fatores históricos, têm menos acesso à educação e, por isso, estão alocadas em trabalhos menos qualificados, os quais, consequentemente, são mal remunerados; pessoas negras estão sob o domínio de uma supremacia branca politicamente construída e que está presente em todos os espaços de poder e de prestígio social.

As duas primeiras explicações são racistas. A primeira é abertamente racista, pois impinge uma espécie de inferioridade natural a pessoas negras. A segunda é veladamente racista, e afirma, ainda que indiretamente, que pessoas negras são culpadas pelas próprias mazelas.

Já a terceira e a quarta trazem o que poderíamos chamar de meias verdades.

Todas essas questões só podem ser respondidas se compreendermos que o racismo, enquanto processo político e histórico, é também um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja consciência e afetos estão de algum modo conectados com as práticas sociais. Em outras palavras, o racismo só consegue se perpetuar se for capaz de: produzir um sistema de ideias que forneça uma explicação “racional” para a desigualdade racial; constituir sujeitos cujos sentimentos não sejam profundamente abalados diante da discriminação e da violência racial e que considerem “normal” e “natural” que no mundo haja “brancos” e “não brancos”.

O racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional. Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico, que a personalidade de homens negros oscila invariavelmente entre criminosos e pessoas profundamente ingênuas, ou que homens brancos sempre têm personalidades complexas e são líderes natos, meticulosos e racionais em suas ações.

Dizer que nossa visão sobre a sociedade não é um reflexo da realidade social, mas a representação de nossa relação com a realidade, faz toda a diferença. Isso faz da ideologia mais do que um produto do imaginário; a ideologia é, antes de tudo, uma prática.

O racismo é uma ideologia, desde que se considere que toda ideologia só pode subsistir se estiver ancorada em práticas sociais concretas.

Pessoas negras, portanto, podem reproduzir em seus comportamentos individuais o racismo de que são as maiores vítimas.

Submetidos às pressões de uma estrutura social racista, o mais comum é que o negro e a negra internalizem a ideia de uma sociedade dividida entre negros e brancos, em que brancos mandam e negros obedecem.

O Tarzan branco costumava bater nos nativos pretos. Eu ficava sentado gritando: “mate essas bestas, mate esses selvagens, mate-os!”. Eu estava dizendo: “Mateme!”.

A ciência tem o poder de produzir um discurso de autoridade, que poucas pessoas têm a condição de contestar, salvo aquelas inseridas nas instituições em que a ciência é produzida.

Por isso, não se pode desprezar a importância dos filósofos e cientistas para construção do colonialismo, do nazismo e do apartheid.

O racismo é, no fim das contas, um sistema de racionalidade, como nos ensina o mestre Kabengele Munanga ao afirmar que o “preconceito” não é um problema de ignorância, mas de algo que tem sua racionalidade embutida na própria ideologia.

No caso do Brasil, o racismo contou com a inestimável participação das faculdades de medicina, das escolas de direito e dos museus de história natural, como nos conta Lilia Schwarcz em seu livro O espetáculo das raças.

Já no século XX, na esteira do Estado Novo, o discurso socioantropológico da democracia racial brasileira seria parte relevante desse quadro em que cultura popular e ciência fundem-se num sistema de ideias que fornece um sentido amplo para práticas racistas já presentes na vida cotidiana. No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade.

Como ensina Fanon, […] a evolução das técnicas de produção, a industrialização, aliás limitada, dos países escravizados, a existência cada vez mais necessária de colaboradores impõem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações econômicas, que, quer se queira quer não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema. O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração brutal dos braços e pernas do homem. A perfeição dos meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo, das formas de racismo.


BRANCO TEM RAÇA?


Não há uma essência branca impressa na alma de indivíduos de pele clara que os levaria a arquitetar sistemas de dominação racial.

Pensar desse modo simplista e essencialista a questão racial pode conduzir-nos a uma série de equívocos que só tornam ainda mais difícil a desconstrução do racismo.

Dizer que o racismo é resultado de uma ahistórica e fantasmagórica supremacia branca reduz o combate ao racismo a elementos retóricos, ocultando suas determinações econômicas e políticas.

Na análise de Maria Aparecida Bento, o racismo funciona como uma espécie de “pacto narcísico” entre brancos em que as condições de privilégio racial não são colocadas em questão. Tanto o “ser branco” quanto o “ser negro” são construções sociais.

O negro é produto do racismo, “sobredeterminado pelo exterior”, diz Frantz Fanon.

Guerreiro Ramos colocava em questão a forma como parte da intelectualidade brasileira essencializava a questão racial, a que referiam como “o problema do negro”. Para Guerreiro Ramos o problema racial não era um “problema do negro”, mas da “ideologia da brancura” presente nas “massas”, mas também na academia.

“Patologia social do branco” era como Guerreiro Ramos referia-se à postura de oposição e de rejeição que caracterizava as pessoas brancas brasileiras diante da possibilidade de integração social com negros.

Ser branco é atribuir identidade racial aos outros e não ter uma. É uma raça que não tem raça. Por isso, é irônico, mas compreensível, que alguns brancos considerem legítimo chamar de “identitários” outros grupos sociais não brancos sem se dar conta de que esse modo de lidar com a questão é um traço fundamental da sua própria identidade.

Esse monumental delírio promovido pela modernidade, essa “loucura codificada” responsável por “devastações psíquicas assombrosas e de incalculáveis crimes e massacres” que é a raça, sempre opera no campo da ambiguidade, da obscuridade, do mal-entendido e da contradição.68

Afinal, o branco periférico não está no topo da cadeia alimentar, pois não é europeu nem norte-americano e, ainda que descenda de algum, sempre haverá um negro ou um índio em sua linhagem para lhe impingir algum “defeito”.

Na mesma toada de Fanon, Cesaire e Senghor, com a negritude e, mais tarde, Steve Biko, com a consciência negra, Guerreiro Ramos propunha o personalismo negro, que pode ser definido como o ato de assumir a condição de negro a fim de subverter os padrões racistas. A “patologia do homem branco” não atingia apenas os brancos, mas também afetava a subjetividade de negros e negras, fazendo-os corresponder aos estereótipos folclóricos, exóticos e ingênuos produzidos pelo racismo. Dessa forma, a defesa da negritude ou do personalismo negro era o primeiro passo para se derrotar a “ideologia da brancura” e remover o que Guerreiro Ramos considerava um dos maiores obstáculos para a construção da nação: o racismo.69

Devido às diferentes formações sociais, ser negro ou “não branco” no Brasil, nos Estados Unidos, nos países da Europa, na África do Sul e em Angola são experiências vivenciadas de maneiras distintas não apenas por conta das óbvias diferenças políticas, econômicas e culturais, mas sobretudo pelas diferenças entre o significado social de ser negro e ser branco resultantes de múltiplos mecanismos político-jurídicos de racialização – cor da pele, nacionalidade, religião, “uma gota de sangue” etc.


RACISMO E MERITOCRACIA


Uma vez que a desigualdade educacional está relacionada com a desigualdade racial, mesmo nos sistemas de ensino públicos e universalizados, o perfil racial dos ocupantes de cargos de prestígio no setor público e dos estudantes nas universidades mais concorridas reafirma o imaginário que, em geral, associa competência e mérito a condições como branquitude, masculinidade e heterossexualidade e cisnormatividade. No contexto brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente racista, uma vez que promove a conformação ideológica dos indivíduos à desigualdade racial.


RACISMO E POLITICA


Na primeira parte deste livro falamos de como o racismo é,sobretudo, uma relação de poder que se manifesta em circunstâncias históricas. Na perspectiva estrutural – que é nosso foco – se consideramos o racismo um processo histórico e político, a implicação é que precisamos analisá-lo sob o prisma da institucionalidade e do poder.

Uma vez que o Estado é a forma política do mundo contemporâneo, o racismo não poderia se reproduzir se, ao mesmo tempo, não alimentasse e fosse também alimentado pelas estruturas estatais. Os regimes colonialistas e escravistas, o regime nazista, bem como o regime do apartheid sul-africano não poderiam existir sem a participação do Estado e de outras instituições como escolas, igrejas e meios de comunicação. O Estado moderno é ou Estado racista – casos da Alemanha nazista, da África do Sul antes de 1994 e dos Estados Unidos antes 1963 –, ou Estado racial – determinados estruturalmente pela classificação racial –, não havendo uma terceira opção. Com isso, quer dizer Goldberg que o racismo não é um dado acidental, mas é um elemento constitutivo dos Estados modernos.


ESTADO E RACISMO NAS TEORIAS LIBERAIS


Nesse sentido, raça e racismo se diluem no exercício da razão pública, na qual deve imperar a igualdade de todos perante a lei. Tal visão sobre o Estado se compatibiliza com a concepção individualista do racismo, em que a ética e, em último caso, o direito, devem ser o antídoto contra atos racistas.75

As teorias que analisam o Estado do ponto de vista da ética se restringem a descrever aspectos institucionais ou jurídicos da organização política, ou não conseguem fornecer explicações suficientes sobre a relação entre raça e política. Como explicar os Estados abertamente racistas, como a Alemanha nazista, os Estados Unidos até 1963 e a África do Sul durante o regime do apartheid? Como explicar a persistência do racismo mesmo em Estados que juridicamente condenam o racismo? Como explicar a ação violenta de agentes do Estado e suas práticas sistematicamente orientadas contra grupos raciais? Como é possível considerar como um problema ético, jurídico ou de supremacia branca os milhares de jovens negros assassinados a cada ano no Brasil?


ESTADO, PODER E CAPITALISMO


Dizer que o Estado é “relação material de força” ou uma forma específica de exercício do poder e de dominação é, sem dúvida, um avanço diante de definições como “bem comum” ou “complexo de normas jurídicas”. É apenas com o desenvolvimento do capitalismo que a política assume a forma de um aparato exterior, relativamente autônomo e centralizado, separado do conjunto das relações sociais, em especial das relações econômicas. No capitalismo, a organização política da sociedade não será exercida diretamente pelos grandes proprietários ou pelos membros de uma classe, mas pelo Estado. A sociedade capitalista tem como característica fundamental a troca mercantil.

O papel do Estado no capitalismo é essencial: a manutenção da ordem – garantia da liberdade e da igualdade formais e proteção da propriedade privada e do cumprimento dos contratos – e a “internalização das múltiplas contradições”, seja pela coação física, seja por meio da produção de discursos ideológicos justificadores da dominação.

Os liames da sociedade capitalista são mantidos por uma combinação de violência e consenso, cujas doses dependem do estágio em que se encontram os conflitos e as crises.

As reformas jurídicas que concedem direitos sociais aos trabalhadores e às minorias são exemplos bem-acabados desse processo, uma vez que, dependendo da força e do poder organizativo dos trabalhadores, certas reivindicações serão obtidas, como aumentos salariais e melhores condições de trabalho. Entretanto, no contexto de uma crise econômica em que os assalariados estejam politicamente enfraquecidos e a manutenção dos direitos sociais comprometa o lucro das empresas capitalistas, a expressão do poder estatal mudará significativamente no intuito de reagir à nova forma adquirida pela interação entre as alterações econômicas e os conflitos sociais.

O Estado, desse modo, não é um mero instrumento dos capitalistas. E quando a ideologia não for suficiente, a violência física fornecerá o remendo para uma sociedade estruturalmente marcada por contradições, conflitos e antagonismos insuperáveis, mas que devem ser metabolizados pelas instituições – o poder judiciário é o maior exemplo dessa institucionalização dos conflitos.


RAÇA E NAÇÃO


O nacionalismo é o solo sobre o qual indivíduos e grupos humanos renascem como parte de um mesmo povo, no interior de um território e sob poder de soberania. Haverá a destruição, a dissolução e a incorporação de tradições, costumes e culturas regionais e particulares que, eventualmente, entrarão em choque com o Estado-nação. Daí ser possível concluir que a nacionalidade, que se manifesta como “orgulho nacional”, “amor à pátria”, “espírito do povo”, é resultado de práticas de poder e de dominação convertidas em discursos de normalização da divisão social e da violência praticada diretamente pelo Estado, ou por determinados grupos sociais que agem com o beneplácito estatal.

Paul Gilroy nos ensina como a nação é constituída por uma tecnologia de poder que se apoia em raça e gênero para estabelecer hierarquias sociais. A reprodução de diferenças baseadas em raça e gênero depende do controle socioestatal sobre o corpo das mulheres. A integridade da raça ou da nação, portanto, emerge como a integridade da masculinidade.

Na verdade, ela só pode ser uma nação coesa se a versão correta de hierarquia de gênero for instituída e reproduzida. A família é o eixo para estas operações tecnológicas. Ela conecta os homens e as mulheres, os garotos e as garotas à comunidade mais ampla a partir da qual eles devem se orientar se quiserem possuir uma Pátria.

Raça e racismo são produtos do intercâmbio e do fluxo internacional de pessoas, de mercadorias e de ideias, o que engloba, necessariamente uma dimensão afro-diaspórica.

A fim de tratar a formação das identidades de modo relacional e histórico, Lélia Gonzalez utiliza-se da categoria Amefricanidade. A autora explica a importância do termo para a compreensão dos elementos que unificam as experiências dos povos da América. Por conseguinte, o termo amefricanas/ amefricanos designa toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro, como a daqueles que chegaram à AMÉRICA muito antes de Colombo. Ontem como hoje, amefricanos oriundos dos mais diferentes países têm desempenhado um papel crucial na elaboração dessa Amefricanidade que identifica, na Diáspora, uma experiência histórica comum que exige ser devidamente conhecida e cuidadosamente pesquisada.

Aníbal Quijano fala de como foi estabelecida uma divisão racial do trabalho no contexto da colonização latino-americana. Ao tratar do sistema colonial instituído na América pela Espanha, Quijano conta que […] em alguns casos, a nobreza indígena, uma reduzida minoria, foi eximida da servidão e recebeu um tratamento especial, devido a seus papéis como intermediária com a raça dominante, e lhe foi também permitido participar de alguns dos ofícios nos quais eram empregados os espanhóis que não pertenciam à nobreza. Por outro lado, os negros foram reduzidos à escravidão.

Três questões mobilizaram decisivamente a intelectualidade brasileira desde o século XIX, e resumem o cerne do pensamento social sobre a formação da nação e da economia brasileira: o que seria o Brasil após a independência de Portugal; o que seria o Brasil com o fim do império; o que seria o Brasil com o fim da escravidão.

Podemos afirmar que o pensamento social brasileiro, em seus mais diversos matizes ideológicos, se ocupou da questão racial, direta ou indiretamente. De fato, é uma questão crucial pensar em como uma nação pode se constituir em um país de profundas desigualdades, atravessado pelo estigma de 388 anos de escravidão. Em O espetáculo das raças, Lilia Schwarcz nos mostra, tal como Mbembe fez com a França, a importância das instituições estatais – no caso, as faculdades de Direito de Recife e São Paulo; as faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro; o Museu de História Natural do Pará – para a disseminação da ideologia do racismo científico no contexto da República Velha.

A partir de 1930, a necessidade de unificação nacional e a formação de um mercado interno, em virtude do processo de industrialização, dão origem a toda uma dinâmica institucional para a produção do discurso da democracia racial, em que a desigualdade racial – que se reflete no plano econômico – é transformada em diversidade cultural e, portanto, tornada parte da paisagem nacional.

Nos Estados Unidos, a unidade nacional ocorreu tendo a segregação racial como condição de convivência pacífica entre os estados do Sul e do Norte depois da guerra civil e do período da Reconstrução.

Já na África do Sul, a unidade contraditória que caracteriza toda a nação também valeu-se da incorporação e institucionalização da segregação racial contra a maioria negra da população e um regime jurídico conhecido como apartheid, uma mistura macabra de práticas colonialistas-escravistas com nazismo, que vigorou até os anos 1990.

Sob as mais diversas formas e contextos históricos, a reivindicação da cultura indígena na forma do pan-indigenismo foi e ainda é crucial na política latino-americana. Do mesmo modo, o panafricanismo desempenha função primordial na constituição do imaginário de resistência não apenas em África, mas em todos os países da diáspora africana, e o pan-arabismo nos países e comunidades de cultura árabe também é exemplo de luta antirracista e de resistência anticolonial.


REPRESENTATIVIDADE IMPORTA?


Enfim, o que chamamos de representatividade refere-se à participação de minorias em espaços de poder e prestígio social, inclusive no interior dos centros de difusão ideológica como os meios de comunicação e a academia. Essa visão, quase delirante, mas muito perigosa, serve no fim das contas apenas para naturalizar a desigualdade racial. Mas o problema da representatividade não é simples e tampouco se esgota nessa caricatura da meritocracia.

A força da eleição ou o reconhecimento intelectual de um homem negro e, especialmente, de uma mulher negra, não podem ser subestimados quando se trata de uma realidade dominada pelo racismo e pelo sexismo. Ademais, a representatividade é sempre uma conquista, o resultado de anos de lutas políticas e de intensa elaboração intelectual dos movimentos sociais que conseguiram influenciar as instituições.

Entretanto, as palavras de Charles Hamilton e Kwame Ture devem ecoar em nossas mentes e nos servir de alerta: “visibilidade negra não é poder negro”.

O que os dois pensadores afirmam é que o racismo não se resume a um problema de representatividade, mas é uma questão de poder real. O fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder, e muito menos que a população negra esteja no poder. Porém, por mais importante que seja, a representatividade de minorias em empresas privadas, partidos políticos, instituições governamentais não é, nem de longe, o sinal de que o racismo e/ou o sexismo estão sendo ou foram eliminados. Na melhor das hipóteses, significa que a luta antirracista e antissexista está produzindo resultados no plano concreto, e na pior, que a discriminação está tomando novas formas.

A representatividade é sempre institucional e não estrutural, de tal sorte que quando exercida por pessoas negras, por exemplo, não significa que os negros estejam no poder. Este ponto, aliás, encerra uma grande contradição no que se refere aos efeitos do racismo, muito bem apontada pelo filósofo Cornel West: cultiva-se a falsa ideia de que membros de minorias pensam em bloco e que não podem divergir entre si. Isso é conveniente para os racistas, porque, sem a possibilidade do conflito, cria-se um ambiente de constrangimento todas as vezes que negros demonstram divergir com medidas tomadas por uma instituição de maioria branca. A representatividade nesse caso tem o efeito de bloquear posições contrárias ao interesse do poder instituído e impedir que as minorias evoluam politicamente, algo que só é possível com o exercício da crítica.


DA BIOPOLÍTICA À NECROPOLÍTICA


Em seu famoso texto Em defesa da sociedade, Foucault demonstra que o racismo está diretamente relacionado à formação dos Estados a partir do século XIX. “O racismo”, diz Foucault, “é, literalmente, o discurso revolucionário, mas pelo avesso”.

A soberania do Estado apoia-se, como já dissemos, na integridade nacional, que é, dito de outro modo, a “proteção da raça”.

Portanto, os Estados a partir do século XIX operam sob o racismo, segundo a lógica do que Foucault denomina “racismo de Estado”.


MAS DE QUE MODO O RACISMO ESTARIA LIGADO AO ESTADO?


Foucault não trata o racismo somente como um discurso ou ideologia; para ele o racismo é uma tecnologia de poder, mas que terá funções específicas, diferente das demais de que dispõe o Estado. Foucault nos conta que, desde o século XIX, os sentidos da vida e da morte ganham um novo status. As mudanças socioeconômicas ocorridas a partir do século XIX impõem uma mudança significativa na concepção de soberania, que deixa de ser o poder de tirar a vida para ser o poder de controlá-la, de mantê-la e prolongá-la. A soberania torna-se o poder de suspensão da morte, de fazer viver e deixar morrer. A saúde pública, o saneamento básico, as redes de transporte e abastecimento, a segurança pública, são exemplos do exercício do poder estatal sobre a manutenção da vida. O biopoder, como Foucault denomina este modo de exercício do poder sobre a vida, é cada vez mais “disciplinar e regulamentador”.

Mas fica a questão: se o poder do Estado se manifesta como tecnologia de sustentação e prolongamento da vida, o que tornaria possível o assassínio, a determinação da morte? “Como exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder?”, pergunta Foucault.

É aí que o racismo exerce um papel central. O racismo tem, portanto, duas funções ligadas ao poder do Estado: a primeira é a de fragmentação, de divisão no contínuo biológico da espécie humana, introduzindo hierarquias, distinções, classificações de raças. O racismo estabelecerá a linha divisória entre superiores e inferiores, entre bons e maus, entre os grupos que merecem viver e os que merecem morrer, entre os que terão a vida prolongada e os que serão deixados para a morte, entre os que devem permanecer vivos e o que serão mortos. E que se entenda que a morte aqui não é apenas a retirada da vida, mas também é entendida como a exposição ao risco da morte, a morte política, a expulsão e a rejeição.

A outra função do racismo é permitir que se estabeleça uma relação positiva com a morte do outro. Não se trata de uma tradicional relação militar e guerreira em que a vida de alguém depende da morte de um inimigo. Trata-se, para Foucault, de uma relação inteiramente nova, compatível com o exercício do biopoder, em que será estabelecida uma relação de tipo biológico, em que a morte do outro – visto não como meu adversário, mas como um degenerado, um anormal, pertencente a uma “raça ruim” – não é apenas uma garantia de segurança do indivíduo ou das pessoas próximas a ele, mas do livre, sadio, vigoroso e desimpedido desenvolvimento da espécie, do fortalecimento do grupo ao qual se pertence.

Desse modo, a raça e o racismo são: […] a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos e toda a sua superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.


RACISMO E NECROPOLÍTICA


Se para Foucault o Estado nazista foi o ponto exemplar da fusão entre morte e política, a síntese mais bem-acabada entre “Estado racista, Estado assassino e Estado suicidário” foi, todavia, a experiência colonial a sua gênese. Como já nos alertou Aimé Césaire, a perplexidade da Europa com o nazismo veio da percepção de que o assassinato e a tortura como práticas políticas poderiam ser repetidas em território europeu, contra os brancos, e não apenas nos territórios colonizados, contra os povos “não civilizados”. Para Césaire “no fim do capitalismo, desejoso de sobreviver, há Hitler. No fim do humanismo formal e da renúncia filosófica, há Hitler”.

E o fato é que o fim do nazismo não significou o fim do colonialismo e nem das práticas coloniais pelos Estados europeus. Por isso, diz Césaire que “a Europa é indefensável”. “fazer viver e o deixar morrer”; o colonialismo não mais tem como base a decisão sobre a vida e a morte, mas tão somente o exercício da morte, sobre as formas de ceifar a vida ou de colocá-la em permanente contato com a morte. Não se trata somente do biopoder e nem da biopolítica quando se fala da experiência do colonialismo e do apartheid, mas daquilo que Achille Mbembe chama de necropoder e necropolítica, em que guerra, política, homicídio e suicídio tornam-se indistinguíveis.

As relações entre política e terror não são recentes, mas é na colônia e sob o regime do apartheid que, segundo Mbembe, instaura-se uma formação peculiar de terror que dá origem ao que o sociólogo chama de necropolítica. Para ele, “a característica mais original dessa formação de terror é a concatenação do biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio”, em que a raça, mais uma vez, é crucial. É no mundo colonial e não no Estado nazifascista que, pela primeira vez, a racionalidade ocidental se encarna na síntese entre “massacre e burocracia”.

A ocupação colonial não pode ser entendida apenas como um evento restrito ao século XIX, mas como uma nova forma de dominação política em que se juntam os poderes disciplinar, biopolítico e necropolítico. . Como também observa Achille Mbembe, o neoliberalismo cria o devir-negro no mundo: as mazelas econômicas antes destinadas aos habitantes das colônias agora se espalham para todos os cantos e ameaçam fazer com que toda a humanidade venha a ter o seu dia de negro, que pouco tem a ver com a cor da pele, mas essencialmente com a condição de viver para a morte, de conviver com o medo, com a expectativa ou com a efetividade da vida pobre e miserável. Ou seja, a continuidade de uma lógica racista de ocupação dos presídios por negros e pobres, adicionada do elemento de descartar uma parte da população ao direito da cidade, continua marcando a segurança pública com o advento das UPPs. Elementos esses que são centrais para a relação entre Estado Penal e a polícia de segurança em curso no Rio de Janeiro.


O QUE É DIREITO?


Direito como justiça, direito como norma, direito como poder e o direito como relação social.

Uma norma jurídica que, por exemplo, viole o valor da liberdade, por mais que seja formalmente correta, é injusta e não poderia ser aplicada.


JUSTIÇA


Certos autores identificados com essa visão do direito, que vai além das normas jurídicas, ou até que independe delas, são chamados de jusnaturalistas, ou seja, creem na existência de um direito natural, de regras preexistentes à imposição de normas pelo Estado. Portanto, leis positivas que amparavam a escravidão nada mais faziam do que espelhar uma ordem já determinada pela “natureza das coisas”, por “Deus” ou pela “razão”. No Brasil, vale lembrar que a razão invocada por muitos juristas do século XIX para se opor à abolição da escravidão residia na necessidade de se manter o respeito ao direito natural de propriedade.

E, perante o direito, escravos eram considerados propriedade privada, mais especificamente, bens semoventes, ou seja, coisas que se movem com tração própria, semelhantes a animais.

Luiz Gama considerava que a escravidão não poderia ser lida como algo justo sob nenhuma hipótese, nem perante as “leis de Deus, da razão natural ou dos homens”. Os defensores da escravidão para Luiz Gama encontravam-se no mais profundo e abjeto abismo moral, de tal sorte que qualquer reação contra eles seria justa, ainda que contrária à legalidade.


O DIREITO COMO NORMA


Essa é a mais comum entre todas as concepções. O direito é, ainda que no plano científico, definido como o conjunto das normas jurídicas, ou seja, com as regras obrigatórias que são postas e garantidas pelo Estado.

E não é uma coincidência: vimos que a perspectiva individualista trata o racismo como um problema jurídico, de violação de normas, as quais, por sua vez, são tidas como parâmetros para a ordenação racional da sociedade.


O DIREITO COMO PODER


Há ainda os que identificam o direito como poder.

Contemporaneamente, a chegada ao poder de grupos de extrema direita em alguns países da Europa e nos Estados Unidos tem demonstrado como a legalidade coloca-se como extensão do poder, inclusive do poder racista, na forma de leis anti-imigração direcionadas a pessoas oriundas de países de maioria não branca, ou da imposição de severas restrições econômicas às minorias. A conclusão é que o racismo é uma relação estruturada pela legalidade. Entretanto, principalmente a partir de uma visão estrutural do racismo, o direito não é apenas incapaz de extinguir o racismo, como também é por meio da legalidade que se formam os sujeitos racializados.

Apresentada uma síntese das definições de direito e suas relações com a análise estrutural do racismo, podemos reduzir a duas as visões correntes sobre a relação entre direito e racismo: o direito é a forma mais eficiente de combate ao racismo, seja punindo criminal e civilmente os racistas, seja estruturando políticas públicas de promoção da igualdade; o direito, ainda que possa introduzir mudanças superficiais na condição de grupos minoritários, faz parte da mesma estrutura social que reproduz o racismo enquanto prática política e como ideologia.


RAÇA E LEGALIDADE


Sobre direito e raça, Achille Mbembe afirma que: […] o direito foi, nesse caso, uma maneira de fundar juridicamente uma determinada ideia de humanidade dividida entre uma raça de conquistadores e outra de escravos. Só à raça dos conquistadores poderia legitimamente se atribuir qualidade humana. A qualidade de ser humano não era conferida de imediato a todos, mas, ainda que fosse, isso não aboliria as diferenças. De certo modo, a diferenciação entre o solo da Europa e o solo colonial era a consequência lógica da outra distinção, entre povos europeus e selvagens.

Nos Estados Unidos, na trilha aberta pelo Movimento pelos Direitos Civis, em 1964, foi promulgado o Ato dos Direitos Civis, que extinguiu formalmente a segregação racial praticada nos Estados sulistas.

No Brasil, a legislação vem há anos tratando da questão racial. Em 1951, a Lei Afonso Arinos tornou contravenção a prática da discriminação racial. A Constituição de 1988 trouxe as disposições mais relevantes sobre o tema, no âmbito penal, ao tornar o crime de racismo inafiançável e imprescritível, disposição que orientou a Lei 7716/89, dos crimes de racismo, também conhecida como Lei Caó, em homenagem ao parlamentar Carlos Alberto de Oliveira, o propositor do projeto de lei.

O texto constitucional garante de forma explícita o respeito à diversidade religiosa – incisos VI, VII e VIII do artigo 5º –, a proteção das diversas manifestações culturais – artigo 215 –, além de estabelecer o dever de salvaguardar as terras indígenas e quilombolas – artigo 231 da Constituição e artigo 68 do ADCT, respectivamente. Por fim, a Lei 9.459/1997 acrescentou o §3º ao artigo 140 do Código Penal para que constasse o tipo penal da injúria racial ou qualificada. São também importantes a Lei 10.639/2003, que determina o ensino de história da África e cultura afro-brasileira em todas as escolas nacionais, e a Lei 12.288/2010, conhecida como o Estatuto da Igualdade Racial, que no artigo 1º dispõe que o Estatuto é […] destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. O certo é que a experiência política e intelectual dos movimentos sociais serviu para inspirar práticas políticas e pedagógicas inovadoras que contestaram firmemente os fundamentos do racismo.


RACISMO E DESIGUALDADE


Falar sobre raça e economia é essencialmente falar sobre desigualdade. Nesse sentido, a explicação mais vulgar atribui a desigualdade salarial ao mérito, ou seja, ao desempenho individual do trabalhador ou trabalhadora.

Ainda nos Estados Unidos, o sociólogo negro Oliver Cox em seu vultoso Caste, Class and Race propõe a tese de que o racismo é derivado das relações econômicas capitalistas e compõe um aspecto essencial da luta de classes. De orientação marxista, Cox considera que o antagonismo racial é um fenômeno surgido na modernidade, não verificado em sociedades pré-modernas. Segundo o estudioso, a exploração e o preconceito racial desenvolveram-se entre europeus com o surgimento do capitalismo e do nacionalismo, e conclui que […] por conta das ramificações mundiais do capitalismo, todos os antagonismos raciais podem ser relacionados às políticas e atitudes dos principais povos capitalistas, as pessoas brancas da Europa e da América do norte.

O que se pode concluir destas duas leituras neoclássicas do problema da discriminação? Fica evidente uma concepção individualista do racismo.

As desigualdades salariais ou relativas às condições de trabalho com base na raça ou no gênero são tidas como efeitos de comportamentos irracionais de alguns agentes econômicos. O uso da palavra “preconceito” no lugar de racismo serve para reforçar a visão psicologizante e individualista do fenômeno. Há ainda uma terceira teoria econômica que merece nossa atenção por destacar os aspectos sistêmicos e até inconscientes da discriminação: a teoria da discriminação estatística. Esta teoria defende que a desigualdade racial e de gênero é fruto de decisões tomadas pelos agentes de mercado, com base em preconceitos estabelecidos na sociedade. Desse modo, as diferenças salariais entre grupos raciais e sexuais não surgem da intenção deliberada em discriminar ou pela aversão a minorias, mas pela persistência de práticas rotineiras, estatisticamente predominantes no mercado. Como é praxe no mercado o pagamento de salários menores para homens negros e mulheres negras, a decisão “racional” de um empresário, ou seja, de um agente econômico que queira maximizar seus lucros, é seguir a tendência do mercado e pagar salários de acordo com a média já estabelecida. A decisão de pagar o mesmo para negros e brancos ou para homens e mulheres é “irracional”, visto que com isso o capitalista teria “prejuízo”, considerando a média do mercado. A grande vantagem dessa teoria em relação às duas anteriormente referidas é demonstrar que a desigualdade racial e de gênero não é produto da intencionalidade dos indivíduos, nem do nível educacional dos agentes econômicos, mas de um sistema que funciona com base em perfis raciais e preconceitos institucionalizados.

Aqueles que, por alguma razão não conseguiram suportar o peso político, econômico e psicológico do racismo em suas trajetórias não se enquadrariam na lógica meritocrática.


UMA VISÃO ESTRUTURAL DO RACISMO E DA ECONOMIA


Apesar da enorme repercussão alcançada pelas concepções individualistas do racismo, a teoria econômica ofereceu importantes contribuições que se ampararam em uma perspectiva estrutural, a qual obriga a economia a voltar-se novamente para a sua dimensão política. O racismo se manifesta no campo econômico de forma subjetiva. Como lembra Michael Reich, o racismo, de formas não propriamente econômicas, ajuda a legitimar a desigualdade, a alienação e a impotência necessárias para a estabilidade do sistema capitalista.

O racismo faz com que a pobreza seja ideologicamente incorporada quase que como uma condição “biológica” de negros e indígenas, naturalizando a inserção no mercado de trabalho de grande parte das pessoas identificadas com estes grupos sociais com salários menores e condições de trabalho precárias.


RACISMO E SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL


Poder-se-ia dizer que o racismo normaliza a superexploração do trabalho, que consiste no pagamento de remuneração abaixo do valor necessário para a reposição da força de trabalho e maior exploração física do trabalhador, o que pode ser exemplificado com o trabalhador ou trabalhadora que não consegue com o salário sustentar a própria família ou o faz com muita dificuldade, e isso independentemente do número de horas que trabalhe. A superexploração do trabalho ocorre especialmente na chamada periferia do capitalismo, onde em geral se instalou uma lógica colonialista. Assim, a existência de escravidão ou formas cruéis de exploração do trabalho não é algo estranho ao capitalismo, mesmo nos ditos países desenvolvidos, onde predomina o trabalho assalariado. No capitalismo dividem espaço e concorrem entre si trabalhadores assalariados bem pagos, mal pagos, muitíssimo mal pagos, escravizados, grandes, médios e pequenos empresários, profissionais liberais etc.


SOBRE A HERANÇA DA ESCRAVIDÃO


As explicações estruturais para a persistência do racismo na economia têm, historicamente, propiciado um grande debate sobre a herança da escravidão. Esta questão é relevante, pois é preciso discutir a escravidão e o racismo sob o prisma da economia política.

Sobre a relação entre escravidão e racismo, há basicamente duas explicações. A primeira parte da afirmação de que o racismo decorre das marcas deixadas pela escravidão e pelo colonialismo.

Dessa forma, o racismo seria uma espécie de resquício da escravidão, uma contaminação essencial que, especialmente nos países periféricos, impediria a modernização das economias e o aparecimento de regimes democráticos.

Outra corrente, apesar de não negar os impactos terríveis da escravidão na formação econômica e social brasileira, dirá que as formas contemporâneas do racismo são produtos do capitalismo avançado e da racionalidade moderna, e não resquícios de um passado não superado.

Em suma: para se renovar, o capitalismo precisa muitas vezes renovar o racismo, como, por exemplo, substituir o racismo oficial e a segregação legalizada pela indiferença diante da igualdade racial sob o manto da democracia.

CLASSE OU RAÇA?


Outra questão que tem suscitado debates em torno da relação entre racismo e economia está no dilema entre raça e classe. O problema da desigualdade deve ser visto a partir da centralidade da classe ou da raça? O racismo tem uma lógica diferente da lógica de classe? Na luta contra a desigualdade, a prioridade deve ser dada à classe ou à raça?

Essas questões têm dividido o movimento negro e as organizações políticas, mas, no meu entender, em torno de um falso dilema.

São indivíduos concretos que compõem as classes à medida que se constituem concomitantemente como classe e como minoria nas condições estruturais do capitalismo. Assim, classe e raça são elementos socialmente sobredeterminados.

Para Clóvis Moura, a luta dos negros desde a escravidão constitui-se como uma manifestação da luta de classes. Após o 13 de maio e o sistema de marginalização social que se seguiu, colocaram-no como igual perante a lei, como se, no seu cotidiano da sociedade competitiva (capitalismo dependente) que se criou, esse princípio ou norma não passasse de um mito protetor para esconder as desigualdades sociais, econômicas e étnicas. O Negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultura, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do Negro, pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto.

A negação da classe como categoria analítica não interessa à população negra, como nos alerta Angela Davis. Esta recusa apenas serve para aprisionar a crítica ao racismo e ao sexismo a preceitos moralistas, incapazes de questionar o sistema de opressão em sua totalidade.

Sobre o dilema “luta de classes/luta de raças”, Florestan Fernandes afirma que “uma não esgota a outra e, tampouco, uma não se esgota na outra”. Para o sociólogo, “ao se classificar socialmente, o negro adquire uma situação de classe proletária”, embora continue “a ser negro e a sofrer discriminações e violências”. A prova disso para Fernandes é a reação das classes dominantes brasileiras à resistência negra nas décadas de 1930, 1940 e 1950.

Para Florestan Fernandes Todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do capital. Todavia, há um acréscimo: existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das reivindicações de classe e das lutas de classes. Indo além, em uma sociedade multirracial, na qual a morfologia da sociedade de classes ainda não fundiu todas as diferenças existentes entre os trabalhadores, a raça também é um fator revolucionário específico. Por isso, existem duas polaridades que não se contrapõem, mas se interpenetram como elementos explosivos – a classe e a raça. No fim das contas, a identidade desconectada das questões estruturais, a raça sem classe, as pautas por liberdade desconectadas dos reclamos por transformações econômicas e políticas, tornam-se prezas fáceis do sistema. Facilmente a questão racial desliza para o moralismo. Por isso, diversidade não basta, é preciso igualdade. Não existe nem nunca existirá respeito às diferenças em um mundo em que pessoas morrem de fome ou são assassinadas pela cor da pele.


RACISMO E DESENVOLVIMENTO


As teorias do desenvolvimento descrevem a complexidade dos processos de industrialização, visto que requerem mudanças sociais profundas que só podem ser conduzidas por políticas nacionais que forneçam as condições objetivas e subjetivas para isso. As condições objetivas correspondem à criação por parte do Estado de meios jurídicos, financeiros e tecnológicos para a instalação de parques industriais, formação de mercado interno, instituição de políticas fiscais, monetárias, salariais e até de defesa nacional compatíveis com o soerguimento de uma nova economia. Já as condições subjetivas dizem respeito à constituição de mão de obra compatível com as exigências da indústria em formação e de padrões de consumo adaptados ao mercado emergente.

Por isso, pode-se dizer que o Brasil não experimentou desenvolvimento ao longo de sua história, mas somente o crescimento econômico. A industrialização não resultou em distribuição de renda e bem-estar para a população. Sem distribuição de renda, a industrialização e o aumento da produção tornaram-se expressões da modernização conservadora, que, em nome da manutenção da desigualdade e da concentração de renda, exigiram a supressão da democracia, da cidadania e a ocultação dos conflitos sociais, inclusive os de natureza racial.

É este o ponto central da crítica feita por Walter Rodney em Como a Europa subdesenvolveu a África.

Neste livro importantíssimo, o intelectual caribenho coloca em xeque a ideia tão comumente divulgada de que os países africanos eram “subdesenvolvidos” antes mesmo da chegada dos europeus. Afirma Rodney que os países africanos eram “desenvolvidos”, uma vez que possuíam as condições técnicas e políticas para sustentar seu modo de vida. A tese de Rodney, apoiada na mais autorizada bibliografia sobre o tema, é a de que foi o colonialismo quem retirou da África os meios necessários para a sua reprodução material.

A Europa, portanto, industrializou-se, criou seu mercado interno, construiu suas instituições políticas e jurídicas, sua “democracia”, sobre os cadáveres de milhões de africanos e africanas, que foram expropriados, torturados, escravizados e assassinados. Foi a Europa, portanto, que “subdesenvolveu” a África, o que também pode ser aplicado à América Latina e à Ásia. Se é possível um modelo desenvolvimentista sem o racismo, a história ainda não nos mostrou.

Achar que no Brasil não há conflitos raciais diante da realidade violenta e desigual que nos é apresentada cotidianamente beira o delírio, a perversidade ou a mais absoluta má-fé.

A população negra constitui mais da metade da população brasileira. Diante de tal demografia, é difícil conceber a possibilidade de um projeto nacional de desenvolvimento que não enfrente o racismo no campo simbólico e prático. O silêncio dos desenvolvimentistas brasileiros diante da questão racial chega a ser constrangedor, pois tudo se passa como se a questão nacional/racial não fosse medular no pensamento social brasileiro.


O QUE É A CRISE, AFINAL?


A crise é um elemento estrutural, inscrito na lógica da sociabilidade capitalista.

Deste modo, sendo a crise parte do capitalismo, defini-la é, de certo modo, determinar o funcionamento não só da economia, mas também das instituições políticas que devem manter a estabilidade.

As crises revelam-se, portanto, como a incapacidade do sistema capitalista em determinados momentos da história de promover a integração social por meio das regras sociais vigentes.

Como assinala David Harvey, o capitalismo possui dificuldades que devem ser negociadas com sucesso para que o sistema permaneça viável. A primeira é a “anarquia” do mercado na fixação de preços.

Já a segunda, é a […] necessidade de exercer suficiente controle sobre o emprego da força de trabalho para garantir a adição de valor na produção e, portanto, lucros positivos para o maior número possível de capitalistas.

É nesse momento que os mecanismos de regulação são fundamentais.


A CRISE DE 1929, O WELFARE STATE

E A NOVA FORMA DO RACISMO


A desigualdade é um dado permanente do capitalismo, que pode ser, a depender de circunstâncias históricas e arranjos políticos específicos, no máximo, maior ou menor. A enorme contradição de uma sociedade que pregava a universalidade de direitos, mas na qual negros, mulheres e imigrantes eram tratados como caso de polícia, gerou movimentos de contestação social que colocaram em xeque a coerência ideológica e a estabilidade política do arranjo socioeconômico do pós-guerra. A única forma de lidar com a denúncia dos movimentos sociais às contradições do Welfare State foi a criminalização e a perseguição aos “radicais”, “criminosos” e “comunistas” que ameaçavam as bases de uma sociedade livre.


NEOLIBERALISMO E RACISMO


A crise do Estado de Bem-Estar Social e do modelo fordista de produção dá ao racismo uma nova forma. Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de financiamento dos direitos sociais a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública. Em nome de uma pretensa “responsabilidade fiscal”, segue-se a onda de privatizações, precarização do trabalho e desregulamentação de setores da economia. Do ponto de vista ideológico, a produção de um discurso justificador da destruição de um sistema histórico de proteção social revela a associação entre parte dos proprietários dos meios de comunicação de massa e o capital financeiro: o discurso ideológico do empreendedorismo – que, na maioria das vezes, serve para legitimar o desmonte da rede de proteção social de trabalhadoras e trabalhadores, da meritocracia, do fim do emprego e da liberdade econômica como liberdade política são diuturnamente martelados nos telejornais e até nos programas de entretenimento. Ao mesmo tempo, naturaliza-se a figura do inimigo, do bandido que ameaça a integração social, distraindo a sociedade que, amedrontada pelos programas policiais e pelo noticiário, aceita a intervenção repressiva do Estado em nome da segurança, mas que, na verdade, servirá para conter o inconformismo social diante do esgarçamento provocado pela gestão neoliberal do capitalismo.

A superação do racismo passa pela reflexão sobre formas de sociabilidade que não se alimentem de uma lógica de conflitos, contradições e antagonismos sociais que no máximo podem ser mantidos sob controle, mas nunca resolvidos. Todavia, a busca por uma nova economia e por formas alternativas de organização é tarefa impossível sem que o racismo e outras formas de discriminação sejam compreendidas como parte essencial dos processos de exploração e de opressão de uma sociedade que se quer transformar."


Quem é que não se lembra


Daquele grito que parecia trovão?!

– É que ontem

Soltei meu grito de revolta.

Meu grito de revolta ecoou pelos

vales mais longínquos da Terra,

Atravessou os mares e os oceanos,

Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,

Não respeitou fronteiras

E fez vibrar meu peito…

Meu grito de revolta fez vibrar os peitos

de todos os Homens,

Confraternizou todos os Homens

E transformou a Vida…

… Ah! O meu grito de revolta que percorreu o

Mundo,

Que não transpôs o Mundo,

O Mundo que sou eu!

Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,

Muito longe,

Na minha garganta!

Amílcar Cabral,

“Emergência da poesia” em Amílcar Cabral: 30 poemas



Exposição do Professor Aldo Santos sobre o Livro "RACISMO ESTRUTURAL" do Filósofo Silvio Almeida no curso Preparatório para o Concurso de Professores/as no Estado de São Paulo, promovido pela subsede da apeoesp/sbc, em 24/06/2023.




Obs. É fundamental a leitura do inteiro teor do citado livro, visto que tem dezenas de notas explicativas, citações variadas e vasta bibliografia.

file:///C:/Users/&Aldo%20Santos/Downloads/Racismo%20estrutural%20Silvio%20Almeida%20(2).pdf







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Demétrius Marx
Demétrius Marx
28 de jun. de 2023

Não há outra forma para compreender a sociedade do que a consciência de classes. O negro é a cara da pobreza,assim como são os nordestinos. A cara da elite branca europeia é a cara dos detentores do

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