Lúcia Skromov***
Um comentário acerca do diretor, Mohsen Makmalbaaf, que apresentou o documentário de 1,30 minutos nas telas do AlJaniah, na noite de domingo, dia 27/10/24.
Bom dia. Hoje, segunda-feira, dia 28 de outubro de 2024, escrevo assim: Normalizar, tornar normal ou natural aquilo que é uma aberração é o que os nazifascistas querem. Só os incautos, ingênuos, inexperientes ou os de má fé aceitam isso.
Nós? NUNCA.
E, vejam, os fascistas usam de todos os recursos como disfarce para empanar a sua crueldade e política de conquista; aproveitam-se até mesmo das brechas que deixam os sem muito poder de observação e, consequementemente, de análise. Penetram, dividem e corroem a resistência.
É o caso daqueles que mal percebem, ditados pelo seu humanismo, que estão, por fim, servindo-os. O humanismo levou a alguma coisa historicamente? Como não concorro com os deuses e , portanto, não sou perfeita, pode ter me escapado. Se me escapou, apresentem exemplos, por favor, para que eu saiba.
Estive no domingo no AlJaniah para assistir à obra mais recente de Mohsen Makmalbaaf. Ele é um cineasta iraniano, desde muito auto-exilado por se contrapor ao regime xiita. Até aí, é posição dele, é um direito, pelo livre pensamento.
E a obra é um documentário: "Aqui as crianças Não brincam juntas". Dirigido por ele e com patrocinio desconhecido. Nos detalhes técnicos está também "Nacionalidade: desconhecido".
Sinto dizer-lhes que o diretor foi mais um usado, por vias indiretas, pelo sionismo. O documentário por si só trabalha cinematograficamente um nicho da realidade das escolas e seus programas com viés ideológico, em Jerusalém. Nenhuma novidade nisso. Contudo, durante a sua fala dirigida ao público, justificou a escolha das imagens, as falas das pessoas entrevistadas e a montagem de seu documentário. No tratamento dado ao tema, mostrou-se, sobretudo, um pacifista e humanista, colocando imagens de crianças que frequentam escolas diferentes. As de origem judaica não se misturam com as palestinas e outras com diferentes origens étnicas ou religiões.
O que ele esperava, afinal? Se o regime de Israel prima pelo apartheid, pela supremacia judaica, pelo desprezo aos palestinos!!!???? Ora, pacifista ou não, o Mohsen - um meritoso diretor- deveria ter se dado conta de que a plateia que o ouvia já sabia desse preconceito. E mais: que os palestinos e outros árabes - tão semitas quanto os judeus- são considerados meros "animais".
Também colocou como algo novo (o que não corresponde) o fato de as crianças estarem separadas porque é preciso garantir que o judeu cresça sabendo que tem que desenvolver ódio aos palestinos e, para isso, suas cabecinhas têm que ser preparadas para combater os que se recusam a entregar as terras para o Estado de Israel. Afinal, tem que haver uma formação para tal e, além do berço contaminado pelo Estado do Terror, as escolas se encarregam do treinamento. O futuro soldado sairá dali pronto para atuar em campo.
Omitiu, porém, aquele aluno que se destacou, o futuro superhomem que será devidamente encaminhado aos órgãos de investigação e espionagem internas e ou externas. Em outras palavras, respectivamente para o setor de inteligência da IDF e para o serviço secreto, o Mossad - o decantado Estado profundo de Israel.
Esqueceu-se também dos alunos que são considerados imprestáveis em qualquer escola, pelos "educadores": os que se inclinam à indiferença quanto à nação sionista e preferem a malandragem, as falcatruas, o crime explícito, os que são dados à alcaguetagem, os que tiram vantagens... Todos serão utilizados, de acordo com os talentos demonstrados. O mais comum é que sejam aproveitados como políticos que usam a máscara que mais lhes convêm perante o Knesset e a máquina partidária em busca de poder e dinheiro.
Mas não para por aí.Nas palavras dele,"as criancas israelitas serão as que vão crescer odiando os palestinos", mas o mesmo discurso é colocado para retratar as crianças palestinas, que "serão os futuros extremistas". Isso é colocar todos no mesmo saco e ignorar quem é quem nesse terreno colonial. Ignora o invasor e o invadido. Não sei se por conveniência ou boa fé, o senhor Mohsen se esqueceu de usar a palavra sionismo no filme. É curioso. Isso foi apontado pela plateia, que evidentemente sentiu falta de algo que nos acompanha pelo mundo afora, de tão sinistro que vem a ser.
Entretanto. incorporou a paz, essa fictícia que só serviu até hoje para massacrar mais ainda os árabes-palestinos. E essa paz vem a ser com os dois Estados. Interessantemente, o senhor Mohsen expressa os desejos dos britânicos sem retirar uma vírgula do que eles defendiam naquela ocasião de 1947/48. Coincidência? Ou chegou a essa solução por osmose? Afinal, ele buscou e encontrou refúgio em países da Europa Ocidental também. Pode ser que, depois dessa última filmagem, algum estúdio de Hollywood o contrate.
Há muito sarcarcasmo aqui.Reconheço. É proposital. O que esse cineasta quer afinal? Falou que nós, o público, tínhamos que olhar os dois lados e verificar que criança é criança. E quem não sabe disso? Não são os palestinos os monstros que construíram essa situação. Ele não enxerga? E duvido que não saiba de que a atividade infantil de brincar - junto ou não - é um direito reconhecido pelos órgãos internacionais. Ele que fala em paz, através de metáforas imagéticas, poderia, sob o meu ponto de vista (eu relevo que é o meu ponto de vista), colocar um discurso sobre as crianças palestinas em Gaza, nos acampamentos de refugiados que sequer têm o direito de brincar.
De todo modo, o senhor Mohsen é um cineasta que veio para mostrar imagens que falam por si só. No debate, falou de solução. É partidário de Dois Estados. O público ouviu e muitos não gostaram. Diante das reações, disse que era um artista e não um político. E mais: "que podemos fazer?" Ora, causou estranhamento. Seu filme não tem o poder de denunciar? Já é um passo. O que eu faço, você que me lê faz, todos nós que marchamos pelas ruas, de rua em rua, em nome de uma Palestina Livre do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo, o que fazemos não é nada? Não é o que podemos humildemente fazer? Pressionar o governo a que rompa com as negociações, seja mais ousado e menos dependente de um congresso vendido? E que impeça a livre sedução do lobby sionista em todos os nossos órgãos públicos?
Acuado, disse mais uma vez que era um artista. Um artista? E não um político? Nada melhor para o Estado de Israel do que ter um inimigo iraniano como esse. Quantos diretores de cinema levantaram a bandeira da Palestina até o fim? do Vietnam? do fim das ditaduras na América Latina e no mundo? Lembrem-me: eles eram artistas ou políticos?
Então, é um artista e não um político, mas, curiosamente, defendeu uma solução pacifista. Não quis falar de que lado está. Nem precisava. Mostrou que estava em cima do muro. Não quer que os palestinos reajam. Encara as crianças palestinas, sem braços ou pernas, sem equilíbrio emocional, em estado de perseguição, constante foco da crueldade dos soldados treinados (nas escolas onde ele captou imagens) e aponta um ideal, que vem a ser escolas onde as crianças estejam juntas, como uma que ele visitou. Não disse o nome, mas se trata de uma escola que recebe crianças árabes, árabes-palestina, judias e demais nacionalidades que habitam em Jerusalém. São 2 mil crianças no total. Considerando que nos 125,42 km² da cidade de Jerusalém vivem 981,71 mil habitantes, esse número é bagatela. E a iniciativa não é do Estado - longe disso -,deve ser de alguma organização não governamental.
Nada contra o ideal. Eu mesma vivo de utopia!! Mas, para tudo tem um limite, principalmente quando estamos falando de crianças relacionadas à morte, num número que supera o número de mortes infantis na II Guerra Mundial. Difícil de acreditar que um cineasta de peso se comporte assim.
De fato, é preciso que seja assim: estado de igualdade. Todas as crianças juntas, sem a sombra do preconceito, convivendo com seus risos, alegrias e confusões próprias da idade. Para isso, não há que esconder o que impede que seja assim: o terror de Estado sionista, o apartheid, intolerância religiosa, para citar alguns itens "preciosos". E nem estou nessas horas citando abertamente as garras do capitalismo!!
Questionado pelo público que o ouvia, o diretor iraniano, entre surpreso e incomodado, perdeu o jeito paternalista (cá entre nós, desconfio que assimilado dos europeus ocidentais). Caiu em si. Disfarçou. Chegou a abordar outro assunto. Saiu da Palestina, cruzou o mar, viajou para o Iran. E tudo muito rápido.
Dali por diante, quando se deu conta de que nós, os simples e comuns tupiniquins, tínhamos pensamento próprio sobre a Causa Palestina, que estava lidando com pessoas, militantes ou não, mas o suficiente politizadas, em sua maioria, naquele espaço, e que tinham um lado político definido, mudou a conversa.
Resolveu adotar uma postura menos professoral. Passou a escutar mais do que dar lições para quem conhece o manual.
Uma moça (não sei o nome) fez questão de inteirá-lo disso. Excelente verbo o da militante que apresentou o Al Janiah como uma casa de resistência e não de puro lazer da classe média.
O Diego Dias, frequentador assíduo do AlJaniah e colaborador no espaço, com a apresentação de um cineclube duas terças /mês, também fez uma fala que contemplou nossa opinião: que a condição que a Palestina enfrenta a duras penas, dentro de resiliência heroica, não é obra de Netanyahu, como o diretor reiterava em sua fala, pois todos que comandaram a máquina do Estado são iguais na manifestação de política de domínio colonial, uns são até mais iguais que outros.
O cineasta passou-nos um conselho: apagar o fogo, ou seja, acabar com o conflito. Claro!! Trabalhamos para o cessar fogo. Quem duvida? Disse que todos nós tínhamos que colocar uma gota d'água naquele fogo. Mas não tinha sido ele mesmo que havia colocado que nada poderíamos fazer?
Ele se contradisse em vários momentos e o discurso chega a ser de tolerância com respeito a existência do Estado de Israel, ainda que não seja um sionista. Diverge, mas se aproxima das falas de muitos sionistas.
Nenhum de nós nasceu ontem e todos temos um certo capital de experiência que serve, portanto, a um militante como instrumento para decodificar as intenções por trás do repertório, o utilizado na linguagem escolhida. É um repertório recorrente. Nas entrelinhas, dá para ler que o cineasta analisa que há dois lados e considera ambos errados: um é o Estado que não hesita em matar para estar no poder; o
outro, é feito de terroristas.
Evidentemente justificada de modo diferente, essa mesma coisa pode ser ouvida de sionistas, dos mais aos menos descarados, dos senhores da guerra, seus esbirros (Conib) a outros que nos perseguem no cotidiano, nas praças e cafés, locais de trabalho e até dos infiltrados nos grupos e eventos.
Quanto mais isolado, mais derrotado, o Estado de Israel mais se mostra magnânimo, aquele que quer parar a guerra, mas que precisa que os reféns sejam libertados, mas não quer libertar as crianças que estão detidas ou devolver a terra alheia.
Recentemente, vi a professora Raquel Rolnic, prefeita (parece que ainda na função na Cidade Universitária) lançar o seu sionismo para fora ao se deparar com uma posição contrária. Disse e diz aos quatro ventos que há mortes de crianças e jovens israelenses quando alguém se mostra sensibilizado com a matança sistemática de crianças palestinas. Contrapõe um discurso às milhares de imagens do genocídio infantil. Ela é considerada progressista em solo brasileiro. É fácil esse disfarce quando se tem dupla cidadania. Esse é apenas um exemplo. Se fosse possível contar tudo que vemos, observamos e pesquisamos... Haja papel pra tanto!!!
Eu me dirigi ao AlJaniah para ver e ouvir somente, pois estava curiosa e representando um setor da PUC que se mostrou interessado em contatar o cineasta para um debate no Serviço Social. Ele e a sua acompanhante tradutora não se interessaram. Apresentaram a justificativa de ele estar aqui como jurado da 48ª Mostra Internacional de Filmes e Documentários. Desconfiei da justificativa, porque, num primeiro momento, manifestaram interesse. Foi logo após eu deixar claro que não concordava com a tal "gota d'água" para apagar o conflito, que o interesse dele também se apagou. Não aguentei e declarei alto e bom som que, assim como ele, fui torturada e ainda estou aqui, militando também pela Palestina e por um Estado Único. Ele havia declarado que foi um militante político na juventude. Deixei claro que militância política não é fogo de palha de juventude, que um militante não deixa de sê-lo se e quando se exila em outro país.
Creio que se sentiu atingido com a questão da "gota d'água". A gota virou um balde de água fria. Para mim, não se trata simplesmente de apagar o fogo ou acabar com o conflito ou guerra ou mesmo o genocídio em curso. Há algo mais ali. O cessar fogo tem que vir acompanhado de resoluções que o mundo determinar, pressionando não só os governos a romper com negociações e relações com o Estado de Israel, bem como levar os hesitantes órgãos internacionais a eliminar esse Estado ilegal e estabelecer o Estado da Palestina como território livre, onde poderão viver cidadãos que queiram construir ali um novo mundo: o mundo de homens livres. Isso é o mínimo a ser alcançado diante do número de mortes palestinas ao longo de dois séculos.
.A "gota d'água" sozinha APENAS vai favorecer o Estado de Israel e acordo que não levarão a Palestina senão a lugar nenhum. Que o diga o Acordo de Oslo!! E quem cair na armadilha de jogar a tal "gota d'água no fogo será fatalmente usado, em nome de um humanismo oco ou de uma paz que existirá só no papel.
Só cai nessa armadilha quem não sabe interpretar ou não estudou as guerras de conquista ou ainda faltou à aula de História, cujo tema era o colonialismo em todas as suas formas conhecidas. Daí, o meu aviso amigo: cuidado para não se queimar ao se aproximar do fogo com apenas a "gota d'água". Já há suficientes feridas. As da Palestina estão abertas faz mais de século.
Agradeço quem leu, por ter-me dado atenção.
Lúcia Skromov- militante pela Palestina
"O cessar fogo tem que vir acompanhado de resoluções que o mundo determinar, pressionando não só os governos a romper com negociações e relações com o Estado de Israel, bem como levar os hesitantes órgãos internacionais a eliminar esse Estado ilegal e estabelecer o Estado da Palestina como território livre, onde poderão viver cidadãos que queiram construir ali um novo mundo: o mundo de homens livres. Isso é o mínimo a ser alcançado diante do número de mortes palestinas ao longo de dois séculos."
Sim, essa será a única forma possível de um caminho para a paz.
Texto perfeito! Ao lê-lo, senti-me presente. Parabéns Lúcia Skcromov!