Marco Arroyo ***
Hoje é um dia muito especial para quem deseja refletir sobre a necessidade de mudanças na forma de pensar e agir, condição Sine Qua Non para provocar transformações estruturais na vida social e na história.
31 de outubro é o dia em que o mundo ocidental predominantemente cristão celebra a Reforma Protestante iniciada pelo monge católico Martinho Lutero, ao pregar as 95 teses na porta da Catedral de Witterberg, Alemanha. Neste mesmo dia celebra-se internacionalmente o Dia das Bruxas, graças à expertise do marketing que fez da festa popular do Halloween uma marca comercial.
A leitura e as releituras desses acontecimentos (Reforma e Bruxas) são tão esclarecedoras e convergentes historicamente quanto divergentes, e por vezes, contraditórios.
Enquanto fatos, tanto a Reforma de Lutero quanto a Caça à Bruxas, são acontecimentos históricos incontestáveis embora polêmicos, como outros tantos acontecimentos entre os quais, por exemplo, o holocausto do povo Judeu durante o Terceiro Reich. Por incrível que pareça sempre haverá defensores do obscurantismo que embora desprovidos de argumentos lógicos e fatuais defenderão o contrário.
Pois bem, existem contundentes fontes documentais que permitem tomar conhecimento sobre a Inquisição e a Caça às Bruxas.
Por séculos, durante o período mais tenebroso da Idade Média, a Igreja Católica Romana fez esforço para manter o poder absoluto sobre os reinados na Europa Ocidental. Uma das suas mais sanguinárias empreitadas ficou conhecida na história como “As Cruzadas”, uma guerra infindável contra o povo muçulmano para conquistar as terras da Palestina e sua capital Jerusalém. No final do século XIII a Europa atravessava as consequências devastadoras de uma guerra que custou milhares de vidas e um incalculável investimento econômico. O povo, como de costume, pagava o preço com pesados tributos e as decorrentes consequências do empobrecimento.
Muitos vilarejos ficaram enlutados por décadas com a perda dos homens que marcharam para a guerra. As mulheres da época tiveram que aprender a sobreviver pelo próprio esforço e empreendedorismo. Entre as diversas atividades artesanais e campesinas, algumas mulheres desenvolveram e acumularam conhecimento em áreas até então desconhecidas e/ou proibidas, especialmente no trato das propriedades medicinais das plantas e do trabalho de parto. Experiências que permitiam um conhecimento empírico no trato dos fenômenos naturais. O saber e o pouco poder a elas conferido pela comunidade na condição de curandeiras e parteiras eram interpretados como uma perigosa ameaça ao poder do sacerdote e como profanação dos dogmas da Igreja.
Preocupado com os desvios da doutrina, o questionamento dos dogmas e a perda do poder coercitivo, o Papa Gregório (127-1241) instituiu a Inquisição, um instrumento de caráter “jurídico” que dava poder de inquerir e punir heresias, blasfêmias, bruxarias e costumes considerados contrários aos ensinamentos da Sagrada Doutrina.
Já o Papa Inocêncio VIII (1198-1216) promulgou a Bula Summis Desiderantes Affectibus onde se condena as práticas de feitiçaria e bruxaria, a qual serviu como base de inspiração aos inquisidores Jakob Sprenger e Heinrich Kramer para escrever o Malleus Maleficarum (“O Martelo das Feiticeiras”). Com base nesse terrível código eclesial cometeram-se atrocidades que mancham a história da Igreja Católica Romana e da humanidade. Hoje estima-se que mais de 100.000 pessoas foram inqueridas e executadas das quais pelo menos 80% foram mulheres, na sua grande maioria, empobrecidas, moradoras de aldeias.
Entre os critérios da inquisição, julgava-se toda mulher acusada nos aparentes traços de pobreza, que fosse viúva, idosa, considerada desagradável e feia ou muito bela e sensual, capaz de despertar desejos eróticos entre os homens.
No processo inquisitório as mulheres eram expostas nuas em público a se procurar marcas de nascença como pintas, verrugas ou cicatrizes. Elas eram submetidas a provas de verificação dos seus poderes sobrenaturais com ferramentas cortantes, caso houvesse sangramento a inquerida era julgada inocente, a ausência de sangramento era considerada prova irrefutável de bruxaria. O fato é que os inquisidores se especializaram em cortes sobre pontos do corpo que não provocavam sangramento.
As mulheres acusadas de feitiçaria e bruxaria, supostamente capazes de provocar pragas e arruinar as colheitas, de produzir fertilidade ou infertilidade em mulheres e impotência masculina, ao serem condenadas, eram jogadas no fundo de um lago, caso afundassem eram consideradas inocentes, já no caso de flutuarem sobre as águas eram consideradas possuidoras de poderes sobrenaturais, portanto, bruxas. Muitas mulheres foram condenadas a morrer na forca por ser considerada morte menos penosa, esse era o caso daquelas que assumiam ser bruxas e dessa forma se pouparem de maior martírio. Aquelas que se negavam a assumir a condição de bruxa eram queimadas na fogueira.
Com a advinda da Reforma Protestante, esperava-se que essa prática abominável por parte da Igreja também acabasse. E como esperar coisa diferente se o próprio reformador Martinho Lutero, assim como outros que o antecederam foi inquirido acusado de heregia?
O fato é que, mesmo com todas as mudanças consideradas fundamentais para o início de uma nova era na história da humanidade, a começar pela separação definitiva entre Igreja e Estado, o fim da exploração econômica da fé religiosa (indulgências), a tradução da Bíblia para a língua do povo, o surgimento da escola pública sob tutela do estado laico, a origem do protestantismo e sua influência sobre o humanismo e o próprio iluminismo; o fato é que também houve grotescos equívocos nas opções e decisões dos reformadores. O próprio Lutero apoiou a repressão e o massacre dos camponeses que se levantaram contra os príncipes. E o que dizer sobre seu posicionamento em relação às supostas bruxas: “Eu quero ser o primeiro a pôr fogo nas bruxas” (mesmo que estivesse insinuando negação da existência das bruxas). Essas são algumas das penosas contradições que pesam sobre a história do movimento protestante que não conseguiu ter empatia com as mulheres que na época eram acusadas de bruxaria.
Ainda tão grave quanto tudo o que já fora tratado antes, foi o fato que em pleno período de expansão do protestantismo durante o século XVI ocorreu em North Berwich, Escócia e em Salém, pertencente às 13 Colônias Americanas, a reprochável prática de Caça às Bruxas. Esse último fato aqui registrado da origem ao denominado puritanismo evangélico instalado nos Estados Unidos, de onde ainda hoje recebemos influência do conservadorismo, moralismo e fundamentalismo que herdamos dos missionários norte-americanos que chegam à América Latina. Em 1962 e 1963 aconteceram julgamentos pelo Tribunal Superior de Justiça que condenaram à forca quatorze mulheres e dois homens em Massachusetts e Connecticut em franco processo de Caça às Bruxas.
Assim, não é difícil concluir que a Reforma Protestante e o movimento protestante não deram conta de incluir na sua pauta a luta contra a Caça das Bruxas. A luta das mulheres por direitos de igualdade e protagonismo na história não encontrou lugar na Reforma Protestante e teve que se render ao domínio do patriarcalismo e do machismo instalados no seio da religião cristã.
Historicamente, as questões de gênero encontraram poucas brechas nos movimentos do Iluminismo e Humanismo. Foi a luta das mulheres iniciada no início do século XX que trouxeram novas luzes à sociedade acerca das relações sociais de gênero. Nessa luta, sem dúvida, o movimento feminista e mais recentemente, o movimento das cientistas sociais, a conquista de oportunidades no mercado de trabalho para desempenhar atividades similares aos homens embora nem sempre com salários iguais, o papel desempenhado nas diversas áreas das artes e do esporte, assim como na produção e no ensino do conhecimento filosófico e especialmente, devido ao importante papel das teólogas feministas e suas releituras dos fundamentos evangélicos que homens e mulheres começam a somar na luta contra a permanente Caça às Bruxas da qual são vítimas as nossas companheiras.
Nesta luta não é só fundamental que o cristianismo (católico-protestante) peça perdão pelos crimes cometidos contra as mulheres ao longo dos séculos, acima de tudo, é preciso criar condições de mudanças estruturais, não só nas instituições eclesiais, mas acima de tudo, na sociedade. As igrejas progressistas têm que assumir de forma implacável a luta para abolir o pensamento fundamentalista que por estes dias se levanta com novo furor para impor seu pensamento monolítico, autoritário, xenofóbico e obscurantista. Esta é uma luta que todo homem e mulher precisa assumir de forma conjunta garantindo o lugar de fala, a participação e o protagonismo em paridade e igualdade de condições as nossas companheiras, assim como, defender o paradigma social da diversidade com direitos iguais nas diferenças.
Não existem bruxas, existem mulheres sábias, posicionadas e atuantes política e socialmente. A festa de Halloween não nos pertence. Ela evoca e reafirma, subliminarmente, uma grande mentira e nos torna coniventes de um crime contra a humanidade. É preciso abolir essa estratégia comercial antes que seja tarde demais. Se há uma coisa boa a ser resgatada na data de 31 de outubro, é para fazer referência a dois elementos importantes que a Reforma Protestante nos propiciou: O Estado é Laico e a Educação Pública é tarefa do Estado e não das entidades religiosas. De tal modo que do dia 31 de outubro deveríamos celebrar em todo o ocidente o Dia da Educação Pública, universal e gratuita para o povo. Aprender a ler e escrever é transformador e libertador, nos torna iguais em direitos e deveres.
Marco Arroyo (1958), natural de Talcahuano, Chile, brasileiro naturalizado. Formado em teologia e pedagogia com mestrado em Ciências Sociais e Religião. Escritor e poeta com diversas obras publicadas.
O que nos assusta é que um Estado - Israel - em nome de um Deus poderoso que teria escolhido um povo como "povo escolhido", pratica aos nossos olhos, agora, um autêntico genocídio de um outro povo que não pode se defender. Que "justiça" é essa??? Que deuses são esses???
Ótimo texto!
No século XVI Hernán Cortés e seu exército espanhol civilizado invadiu e destruiu o Império Asteca. Uma das principais alegações era que aquela civilização inferior deveria ser destruída porque cultuava deuses infernais, sacrificando a eles seres humanos.
De fato o sacrifício humano compunha a cultura Asteca, segundo as crenças daquele povo, mas essa indignação espanhola ocorreu no mesmo período em que Espanha e quase toda a Europa torturavam e sacrificavam milhares de mulheres em nome do Deus único.
Civilizações que se julgam avançadas costumam destroçar outras que julgam inferiores com pretextos diversos, mas notoriamente com interesses econômicos e imperialistas. Foi assim no passado, é assim agora.
Parabéns Marco Arroyo!