Por: Aldo Santos ***
A definição etimológica da palavra diáspora está relacionada à dispersão, espalhamento, separação, afastamento, dentre outras e distintas definições.
Neste sentido, a tradicional diáspora dos judeus, diáspora africana e a nordestina têm relações, mesmo dentro ou fora da territorialidade de cada seguimento.
A partir da fome, da seca, da miséria e do abandono intencional ou não do poder central, as pessoas são forçadas ao deslocamento, extraterritorialidade ou intra-territorialmente.
No trabalho abaixo, o autor destaca o valor cultural e até musical que envolve esta histórica agressão que está impregnada neste tipo de dispersão dos povos pelo mundo.
“É neste sentido que se torna possível a analogia entre os conceitos de Diáspora Africana e a noção de Diáspora Nordestina, sugerido nesta pesquisa.
Embora a primeira, conforme demonstrado por Stuart Hall, ocorra entre territórios nacionais (Nações) distintos; e a segunda, trate-se da migração, um processo que ocorre em âmbito nacional (entre estados da federação Brasileira), é possível vermos semelhanças, ainda que respeitando sua complexidade. Podem-se visualizar as inegáveis similitudes entre as ações dos diversos povos no espaço geográfico.
Portanto, se faz necessário essa análise para a compreensão desses processos, e, logo, a articulação com o conceito de território para atingir um maior entendimento desses fenômenos.” Pagina 22( https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/47065/47065.PDF)
Segundo entrevista do professor Aldo Santos, pela jornalista Ana Valim, publicada na Revista Acumaé? Força Nordestina, ela vai destacar inúmeras vertentes deste tema que está muito presente no nosso cotidiano.
“Autor de diversas obras, o professor Aldo Josias dos Santos, cearense de Brejo Santo, no Cariri, lança neste mês de novembro mais uma publicação: “Rumo à Estação Catanduva”. Uma história escrita com a sua vida, que conta a trágica experiência de um adolescente, acometido pela tuberculose, após ter sido envenenado por um produto agrotóxico perigoso, na lida da terra.
Sua trajetória se confunde com a de milhares de nordestinos e nordestinas que deixaram sua terra natal, sobretudo no período do grande êxodo rural, nas décadas de 1960 e 80, buscando a sobrevivência em outras regiões do país, de modo intenso no Sudeste e mais precisamente no estado de São Paulo.
Filho de Josias Raimundo dos Santos e de Maria Bevenuta de Jesus, ainda bebê, migrou com os pais para o interior de São Paulo. Na década de 1970, mudou-se para São Bernardo do Campo/SP, onde reside até hoje. É pai de três filhos e uma filha e avô de três netas. Graduado em Filosofia e Estudos Sociais, Bacharel em Teologia, tem especialização em Filosofia da Educação e Sociologia do Mundo do Trabalho, é mestre em História e Cultura e recentemente concluiu o curso de Psicanálise.
Aldo Santos, como é conhecido, foi vereador em São Bernardo por quatro mandados, de 1989 a 2004. Hoje, aposentado, faz parte da diretoria da APEOESP – Sindicato dos Professores da Rede Pública do Estado de São Paulo e da Associação dos Professores de Filosofia e Filósofos do Estado de São Paulo - APROFFESP.
“Não é correto falar que os nordestinos vieram para São Paulo. Nós fomos expulsos pela fome e pela miséria, porque se estivesse bem lá, a família não deixaria seu lugar social, sua terra de origem, sua cultura, para vir para um lugar estranho. Meu pai, minha mãe e mais quatro irmãos viajaram por 18 dias, em um sofrimento desumano, lançados à própria sorte. E por que meu pai fazia isso? Para fugir da seca, porque se ficassem lá, grande parte das pessoas morreria. Não era uma opção, era uma imposição de sobrevivência. E essas coisas marcam muito a gente.”
Segundo Aldo, “Essa expulsão do povo pobre, faminto, desesperado com a seca é uma marca profunda inclusive na psique humana, que até hoje eu sinto. Eu sou da primeira leva do `pau de arara`. Eu vim com quatro meses, amontoado com minha família em um caminhão, por estradas péssimas, só com uma lona jogada por cima.”
Como afirma, essa história é muito doída e muito triste e tem seus responsáveis políticos que, lá e aqui, usavam e usam a mão de obra barata, muitas vezes em condições de semiescravidão ou até de escravidão. “Essas pessoas, expulsas do seu lugar, foram lançadas em uma realidade nova, sem qualquer assistência ou informação e nenhuma perspectiva de acolhimento”.
Chegando em São Paulo, os pais semianalfabetos, não tinham opção de trabalho. “O gato nos levava para trabalhar em uma fazenda, na forma e nas condições que o fazendeiro impunha, era tudo muito difícil, muita exploração. Foram dias de sofrimento e até hoje quando escuto as nossas músicas do Nordeste é como se uma navalha me cortasse por dentro. Só de saber pelo que passaram nossos pais e avós. Acho que a música do Luiz Gonzaga, `Triste Partida` deveria ser o hino dos nordestinos, do povo que foi expulso de seu lugar de origem, esperando uma vida melhor, mas sem alternativa, como diz a música, ter que `ser escravo no Norte ou no Sul’.
Foi no trabalho na terra que Aldo Santos, ainda adolescente, quase morreu ao ser envenenado quando pulverizava uma plantação de algodão com um produto químico agrícola proibido em outros países, mas liberado no Brasil. O que lhe roubou anos da vida e o condenou a amargar uma verdadeira via crucis, de hospital em hospital, o que conta em seu novo livro, Rumo a Estação Catanduva.”
Para Aldo Santos, " o preconceito é sempre um fator depreciativo sobre o lugar de origem, exatamente para justificar tanto a miséria, o sofrimento, o baixo salário e a semiescravidão do nordestino, como também para justificar a falta de investimento no próprio Nordeste. ”
Conforme mencionado, a poesia de Patativa do Assaré, musicalizada por Luiz Gonzaga é a expressão deste lamento e do sofrimento do povo nordestino, desnucleado forçadamente por conta da situação de miséria, seca e fome a que foi condenado este importante espaço territorial brasileiro. Com pequenas alterações da poesia de Patativa, a letra cantada pelo Gonzagão preserva o eixo central da poesia original.
Triste partida
"Setembro passou
Outubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus, que é de nós
(Meu Deus, meu Deus)
Assim fala o pobre
Do seco nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
(Ai, ai, ai, ai)
A treze do mês
Ele fez experiência
Perdeu sua crença
Nas pedra de sal
(Meu Deus, meu Deus)
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
(Ai, ai, ai, ai)
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O Sol bem vermeio
Nasceu muito além
(Meu Deus, meu Deus)
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois barra não tem
(Ai, ai, ai, ai)
Sem chuva na terra
Descamba janeiro
Depois fevereiro
E o mesmo verão
(Meu Deus, meu Deus)
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz "isso é castigo"
Não chove mais não
(Ai, ai, ai, ai)
Apela pra março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Senhor São José
(Meu Deus, meu Deus)
Mas nada de chuva
'Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
(Ai, ai, ai, ai)
Agora pensando
Ele segue outra trilha
Chamando a família
Começa a dizer
(Meu Deus, meu Deus)
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nós vamo a São Paulo
Viver ou morrer
(Ai, ai, ai, ai)
Nós vamo a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheias
Nós vamo vagar
(Meu Deus, meu Deus)
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Daí pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
(Ai, ai, ai, ai)
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
(Meu Deus, meu Deus)
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
(Ai, ai, ai, ai)
Em um caminhão
Ele joga a famía
Chegou o triste dia
Já vai viajar
(Meu Deus, meu Deus)
A seca terrive
Que tudo devora
Ai, lhe bota pra fora
Da terra Natal
(Ai, ai, ai, ai)
O carro já corre
No topo da serra
Olhando pra terra
Seu berço, seu lar
(Meu Deus, meu Deus)
Aquele nortista
Partido de pena
De longe da cena
Adeus meu lugar
(Ai, ai, ai, ai)
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
(Meu Deus, meu Deus)
Tão triste coitado
Falando saudoso
Um seu filho choroso
Exclama a dizer
(Ai, ai, ai, ai)
De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
(Meu Deus, meu Deus)
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
(Ai, ai, ai, ai)
E a linda pequena
Tremendo de medo
Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?
(Meu Deus, meu Deus)
Meu pé de roseira
Coitado ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
(Ai, ai, ai, ai)
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo e azul
(Meu Deus, meu Deus)
O pai pesaroso
Nos fio pensando
E o carro rodando
Na estrada do sul
(Ai, ai, ai, ai)
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Percura um patrão
(Meu Deus, meu Deus)
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
(Ai, ai, ai, ai)
Trabaia dois ano
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vorta
(Meu Deus, meu Deus)
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
(Ai, ai, ai, ai)
Se arguma notícia
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
(Meu Deus, meu Deus)
Lhe bate no peito
Saudade de móio
E as água nos zóio
Começa a cair
(Ai, ai, ai, ai)
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
(Meu Deus, meu Deus)
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famía
Não volta mais não
(Ai, ai, ai, ai)
Distante da terra
Tão seca, mas boa
Exposto à garoa
A lama e o baú
(Meu Deus, meu Deus)
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No norte e no sul
(Ai, ai, ai, ai)
Letra: Patativa do Assaré.
Do ponto de vista cultural e musical, este aspecto emocional destas diásporas batem fundo em nossa memória, nossa revolta, despertando uma espécie de ódio de classe eternizado nas mais variadas gerações.
Citei a música triste partida como o Hino dos nordestinos, mas outras músicas dialogam também com nosso imaginário diaspórico.
A dispersão é forçada, e, mesmo o nordestino afirmando que “só deixo meu cariri no último Pau de arara”. Ele acaba sendo obrigado a romper com sua realidade e forçado a ruptura de certa forma, existencial.
“A vida aqui só é ruim
Quando não chove no chão
Mas se chover dá de tudo
Fartura tem de montão
Tomara que chova logo
Tomara, meu Deus, tomara
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocoalho
Pendurado no pescoço
Vou ficando por aqui
Que Deus do céu me ajude
Quem sai da terra natal
Em outro canto não pára
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocoalho
Pendurado no pescoço
Vou ficando por aqui
Compositores: Jose Guimaraes - Corumbá -Venâncio.
Outro diálogo profundo vamos encontrar na música igualmente cantada por Luiz Gonzaga:
Uma mistura de fé popular, culto à natureza e à crença no poder sobrenatural, seus pedidos são atendidos ou não, e , no limite, ainda culpam “o pobre coitado que de joelho rezou um bocado”, mas inconformado ainda diz e assume sua possível culpa: “Meu Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe”. E ainda arremata: “Eu acho que a culpa foi
desse pobre que nem sabe fazer oração”.
Mas, inconformado e estonteado diante da tragédia social, finaliza: ” Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno
Desculpe eu pedir para acabar com o inferno
Que sempre queimou o meu Ceará”.
Analise a letra:
Veja o conjunto do diálogo musical:
"Oh Deus, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar
Oh Deus, será que o senhor se zangou
E só por isso o sol se arretirou
Fazendo cair toda chuva que há
Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho
Pedir pra chover, mas chover de mansinho
Pra ver se nascia uma planta no chão
Meu Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe
Eu acho que a culpa foi
Desse pobre que nem sabe fazer oração
Meu Deus, perdoe eu encher os meus olhos de água
E ter-lhe pedido cheinho de mágoa
Pro sol inclemente se arretirar
Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno
Desculpe eu pedir para acabar com o inferno
Que sempre queimou o meu Ceará
Compositores: Gordurinha / Nelinho
Somos errantes em busca da nossa origem, da terra nascente, do nosso lugar social e do nosso berço que emerge do chão, conforme destaca a música de Gilberto Gil /José Domingos, o Dominguinhos.
“Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado”.
Letra de Lamento sertanejo.
Compositores: Gilberto Gil / Jose Domingos (Dominguinhos)
Finalmente, confesso que a “A dor da gente é dor de menino acanhado
Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar
Que salta aos olhos igual a um gemido calado
A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar
A dor da gente é dor de menino acanhado
Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar...
Moinho de homens que nem girimuns amassados
Mansos meninos domados, massa de medos iguais
Amassando a massa a mão que amassa a comida
Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais.
Compositores: Antonio Jorge Portugal / Raimundo Sodre
Neste contexto, um veículo de comunicação para tratar das demandas nordestinas é de fundamental importância para dar voz aos silenciados historicamente, vítimas de uma diáspora que perecem em terras distantes, porém o coração pulsa fortemente a partir de sua origem, sua vida ou não vida, sua cultura, seus valores e costumes. Muitas vezes, sua identidade se realiza na celebração do retorno de onde nunca deveria ter saído ou expulso.
Aldo Santos – Ex-vereador em São Bernardo do Campo, Sindicalista e militante o Psol.
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